sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Uma crônica de Adélia Prado

2. ADÉLIA PRADO. Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo. Coisa do Teodoro, ele quem me contou, você sabe, marido depois de um certo tempo de casamento fala certas coisas com a mulher. O seu não fala? Pois é, e de novo tem um tempão que aconteceu. Lembra aquela história dos queijos? Igual. Demorou um par de anos pra me contar. O pessoal dele é assim, sem pressa. Tem uma história deles lá, que o pai dele, meu sogro, esperou 52 anos pra relatar. Diz ele que esperou os protagonistas morrerem. Tem condição? Mas o Teodoro — foi quando a gente mudou pra casa nova — teve de ir nas Goiabeiras tratar um marceneiro e passou, pra aproveitar, na casa da tia dele, a Carlina do Afonso, e encontrou lá o Gomide. Tou encompridando, acho que é só por medo do fim, mas agora já comecei, então. Então, diz o Teodoro, que o Gomide tirou do bolso do paletó uma trouxinha de palha de milho, cortadas elas todas iguaizinhas e amarradas com uma embirinha da mesma palha. Escolheu, escolheu, pegou uma bem lisa e bem branquinha, tirou o canivete do outro bolso, lambeu a palha pra lá, pra cá, e ficou um tempão lhe passando firme a lâmina, do meio pras pontas, de ponta a ponta, entremeando com lambidas. Depois, ainda segurando a palha entre os dedos, foi a hora de tirar e picar o fumo de rolo bem fininho. Ia picando e pondo na concha da mão. Acabou, guardou o rolo e ficou socavando o fumo na mão com a ponta do canivete. Depois pegou a palha, mais uma lambida e foi pondo nela o fumo, espalhando ele por igual na canaleta formada, pressionando bem pra ficar bem firme. Deu mais uma lambida na parte mais próxima do fumo e com os polegares e indicadores foi enrolando o cigarro devagarinho, uma enrolada e uma lambida, uma enrolada e uma lambida. Com o canivete dobrou uma das pontas para o fumo não escapar, tirou a binga do bolso, acendeu e pegou a pitar. Agora é que vem, ai, ai. Teodoro falou que o tempo todo da operação ele não despregava o olho daquilo. Disse que nem sabe o que tia Carlina arengava, só punha sentido no Gomide fazendo o pito. Diz ele que foi uma coisa tão esquisita — esquisita, não —, tão encantada que ele ficou de pau duro. É isso. Falou também que ficou doido pra sair dali, comprar palha, fumo de rolo e repetir tudo igualzinho ao Gomide. Eu entendo. Quando conheci o Teodoro, ele fumava e eu achava muito emocionante. Tenho muita saudade de quando não existia essa amolação de cigarro dar câncer, nem de mulher ser magra. A gente tinha mais tempo para o que precisa, não é mesmo? Será que faz mal mesmo? Colesterol, depois de tanto barulho, estão falando que já tem do bom. Qualquer dia vou pedir ao Teodoro pra dar uma fumadinha, só pra fazer tipo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Cavalgada-Cecília Meireles

Meu sangue corre como um rio
num grande galope,
num ritmo bravio,
para onde acena a tua mão.

Pelas suas ondas revoltas,
seguem desesperadamente
todas as minhas estrelas soltas,
com a máxima cintilação.

Ouve, no tumulto sombrio,
passar a torrente fantástica!
E, na luta da luz com as trevas,
todos os sonhos que me levas,
dize, ao menos, para onde vão!

Cecília Meireles
Viagem, 1.938

sábado, 10 de dezembro de 2011

Miguel Torga: De Profundis...

De profundis

Senhor, que sabes quem sou,

Sabe lá também o resto:

Sabe lá que o meu protesto

Não é isto que tu vês...

Não é isto...

Nem a facada do teu filho Cristo...

Nem o pranto que tens visto

Correr em lava a teus pés...



Não é isto,

Nem o sonho de Babel...

Nem o bombo que fiz da minha pele...

Nem o Credo num Deus que me perdeu...

Foram gestos que passaram

Pelo meu corpo e roubaram

Um perfume que julgaram

Que era meu...





Não é isto, nem aquilo

Que um mocho a cantar de grilo

Te mandou como um sinal

Da grande dor que me dói...

Só é sinal do meu todo

Esta elegia do lodo,

Que não foi...



Não é isto,

Nem o muito que há-de vir:

O sarro que há-de sair

Da vasante da maré...

O fundo do mar é sujo,

Mas nos olhos do marujo

Não se vê...



Não é isto, nem é nada

Que chegue à tua morada

Se, a minha assinatura,

Que sou eu...

Eu, esta ovelha ranhosa

Que remói silenciosa

a lembrança dolorosa

do pastor que lhe bateu...



O Outro livro de Job (1936)