quarta-feira, 29 de junho de 2011

A Volta do parafuso

Henry James
"A volta do parafuso
A outra volta do parafuso conta a história da jovem filha de um pároco que, iniciando-se na carreira de professora, aceita mudar-se para a propriedade de Bly, em Essex, arredores de Londres. Seu patrão é tio e tutor de duas crianças, Flora e Miles, cujos pais morreram na Índia, e deseja que a narradora (que não é nomeada) seja a governanta da casa de Bly. Ao chegar a Essex, a jovem logo percebe que duas aparições, atribuídas a antigos criados já mortos, assombram a casa. O triunfo íntimo da protagonista, mais que desvendar o mistério de Bly, consiste em vencer o silêncio imposto pela diferença de condição social entre ela e seus pequenos alunos.
Desde que foi publicada, sucessivas gerações de leitores, críticos e artistas têm se inspirado na maestria narrativa desta novela, cuja tradução de Paulo Henriques Britto reconstitui com precisão a elegante contundência do original inglês."


Henry JamesNasceu em 1843 em Washington Place, Nova York, descendente de ancestrais escoceses e irlandeses. Seu pai era um eminente teólogo e filósofo, e seu irmão mais velho, William, também se tornou famoso como filósofo. James estudou em escolas em Nova York e, mais tarde, em Londres, Paris e Genebra; em 1862, cursou a faculdade de direito de Harvard por um curto período. Em 1865 começou a publicar resenhas e contos em periódicos norte-americanos. Já adulto, fez duas viagens à Europa, e em 1875 mudou-se para Paris, onde conheceu Flaubert, Turguêniev e outras figuras do mundo literário. Um ano depois, porém, mudou-se para Londres, onde foi tamanho seu sucesso na sociedade que confessou ter aceitado 107 convites apenas no inverno de 1878-9. Em 1898 mudou-se de Londres e foi morar na Lamb House, em Rye, Sussex. Henry James naturalizou-se britânico em 1915, e foi agraciado com a Ordem do Mérito em 1916, pouco antes de morrer, em fevereiro do mesmo ano. Além de inúmeros contos, peças teatrais, livros de crítica literária, textos biográficos e autobiográficos e muitos escritos de viagens, James escreveu cerca de vinte romances, dos quais o primeiro, Watch and ward, foi lançado como folhetim na Atlantic Monthly em 1871. Sua novela Daisy Miller (1878) tornou-o um escritor conhecido em ambas as margens do Atlântico. Entre outros romances, publicou Roderick Hudson (1875), The American (1877), The Europeans (1878), Washington Square (1880), The portrait of a lady (1881), The Bostonians (1886), The Princess Casamassima (1886), The tragic muse (1890), The spoils of Poynton (1897), What Maisie knew [Pelos olhos de Maisie] (1897), The awkward age (1899), The wings of the dove (1902), The ambassadors (1903) e The golden bowl (1904).

Elenir me mandou e eu completo sobre Meia- noite em Paris

Elenir
Transcrevo o texto de Cora Rónai, no Globo, de 23/06, sobre o filme (não consegui colá-lo aqui):
"Wood Allen, felizmente, não aderiu à onda, "Meia-noite em Paris", filmado em magnífico 2D, é uma espécie de "Rosa púrpura do Cairo" ao contrário, a realização das fantasias de todos nós que já sonhamos viver na Paris dos anos 1920. De quebra, é um passeio magnífico pela cidade dos corações de quem já esteve lá e de quem ainda espera ir. A história fica melhor se o espectador souber quem são os personagens com quem Gil, o protagonista, se encontra - Hemingway, Scott e Zelda, os surrealistas, Picasso, Matisse, Gertrude Stein, Cole Porter... Este protagonista é, claro, o alter-ego de Wood Allen que, finalmente, encontrou em Owen Wilson o ator certo para o seu papel".

domingo, 26 de junho de 2011

Camus para reflexão

«Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de jogos; é preciso primeiro responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para ser estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se a importância dessa reposta, porque ela vai anteceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir mais fundo até torná-las claras para o espírito. Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranqüilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente»

quinta-feira, 23 de junho de 2011

A importância da literatura, por Mário Vargas Llosa


A importância da literatura
por Mario Vargas Llosa (foto)

Em feiras de livros ou mesmo livrarias, freqüentemente alguém se aproxima pedindo-me autógrafo. "É para minha mulher, filha ou mãe", explica. "Ela adora ler!" De pronto pergunto: "E o senhor? Não gosta de ler?" E a resposta é quase sempre a mesma: "Gosto, mas sou muito ocupado."

Já ouvi essa explicação dezenas de vezes. Esse homem - e milhares outros como ele - tem tantos afazeres importantes, tantas obrigações e responsabilidades, que não pode perder seu precioso tempo mergulhado num romance.

Segundo esse raciocínio, a literatura seria uma atividade dispensável, uma diversão que somente pessoas com muito tempo livre poderiam se permitir.

Gostaria de apresentar alguns argumentos contra a idéia da literatura como passatempo e em prol de considerá-la, além de uma das ocupações mais estimulantes e enriquecedoras do espírito humano, uma atividade insubstituível para a formação de cidadãos na sociedade moderna e democrática. Por essa razão, ela deveria ser semeada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas educacionais.

Vivemos numa era de especialização em virtude do extraordinário desenvolvimento da ciência e da tecnologia, e da conseqüente fragmentação do conhecimento em incontáveis avenidas e compartimentos.

A especialização traz benefícios. Possibilita pesquisa e experimentos, e é a força motriz do progresso. Mas também destrói os denominadores comuns culturais que permitem a coexistência, a comunicação e a solidariedade. E leva à separação dos seres humanos em guetos culturais de especialistas, confinados - pela linguagem, por códigos de conduta e pelo conhecimento particularizado - a uma especificidade contra a qual um antigo provérbio já nos advertia: não se concentre tanto na folha, a ponto de esquecer que ela é parte da árvore e esta, da floresta.

Em grande medida, a noção da existência dessa floresta depende do senso de conjunto que une a sociedade e não a deixa se desintegrar numa centena de especificidades. A ciência e a tecnologia, portanto, já não podem desempenhar esse papel unificador da cultura.

A literatura, por sua vez, foi e, enquanto existir, continuará sendo um denominador comum da experiência humana. Aqueles de nós que leram Cervantes, Shakespeare, Dante ou Tolstoi entendem uns aos outros e se sentem indivíduos da mesma espécie porque, nas obras desses escritores, aprenderam o que partilhamos com seres humanos, independentemente de posição social, geografia, situação financeira e período histórico.

Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais. Nada nos ensina melhor do que os bons romances a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do legado humano e a estimá-las como manifestação da multifacetada criatividade humana.

Ler boa literatura é ainda aprender o que e como somos - em toda a nossa humanidade, com nossas ações, nossos sonhos e nossos fantasmas -, tanto no espaço público como na privacidade de nossa consciência. Esse conhecimento se encontra apenas na literatura. Nem mesmo os outros ramos das ciências humanas - a filosofia, a história ou as artes - conseguiram preservar essa visão integradora e um discurso acessível ao leigo, pois também eles sucumbiram ao domínio da especialização.

O elo fraternal que a literatura estabelece entre os seres humanos transcende todas as barreiras temporais. A sensação de ser parte da experiência coletiva através do tempo e do espaço é a maior conquista da cultura, e nada contribui mais para renová-la a cada geração do que a literatura.

O que a literatura deu à humanidade, então?

Um de seus primeiros efeitos benéficos ocorre no plano da linguagem. Uma sociedade sem literatura escrita se exprime com menos precisão, riqueza de nuances, clareza, correção e profundidade do que a que cultivou os textos literários.

Uma humanidade sem romances seria muito parecida com uma comunidade de gagos e afásicos. Isso também vale para o indivíduo. As pessoas que nunca lê, lê pouco ou lê apenas lixo pode falar muito, mas vai sem dizer pouco, porque dispõe de um repertório mínimo de palavras para se expressar.

Não se trata de uma limitação somente verbal, mas também intelectual, uma indigência de idéias e conhecimento, porque os conceitos pelos quais assimilamos a realidade não são dissociados das palavras que nossa consciência usa para reconhecê-los e defini-los.

Nenhuma disciplina substitui a literatura na formação da linguagem. O conhecimento transmitido por manuais técnicos e tratados científicos é fundamental, mas eles não nos ensinam a nos exprimir corretamente. Ao contrário, com freqüência são mal escritos porque os autores, às vezes expoentes indiscutíveis em sua profissão, não sabem transmitir seus tesouros conceituais.

Outro motivo para se conferir à literatura um lugar de destaque na vida das nações é que, sem ela, a mente crítica - verdadeiro motor das mudanças históricas e melhor escudo da liberdade - sofreria uma perda irreparável. Porque toda boa literatura é um questionamento radical do mundo em que vivemos. Qualquer texto literário de valor transpira uma atitude rebelde, insubmissa, provocadora e inconformista.

A literatura apazigua essa insatisfação existencial apenas por um momento, mas nesse instante milagroso, nessa suspensão temporária da vida, somos diferentes: mais ricos, mais felizes, mais intensos, mais complexos e mais lúcidos. A literatura nos permite viver num mundo onde as regras inflexíveis da vida real podem ser quebradas, onde nos libertamos do cárcere do tempo e do espaço, onde podemos cometer excessos sem castigo e desfrutar de uma soberania sem limites. Como não nos sentirmos enganados depois de ler "Guerra e Paz" ou "Em Busca do Tempo Perdido" e voltar a este mundo de detalhes insignificantes, obstáculos, limitações, barreiras e proibições que nos espreitam de todo canto e em cada esquina corrompem nossas ilusões?

Quer dizer, a vida imaginada dos romances é melhor: mais bonita e diversa, mais compreensível e perfeita. Talvez seja esta a maior contribuição da literatura ao progresso: lembrar que o mundo é malfeito, e que poderia ser melhor, mais parecido com o que a imaginação é capaz de criar.

A sociedade livre e democrática requer cidadãos responsáveis, críticos, independentes, difíceis de manipular, em constante efervescência espiritual e cientes da necessidade de examinar continuamente o mundo em que vivemos, para tentar aproximá-lo do mundo em que gostaríamos de viver.

Sem insatisfação e rebeldia, ainda viveríamos em estado primitivo, a história teria parado, o indivíduo não teria nascido, a ciência não teria alçado vôo, os direitos humanos não teriam sido reconhecidos e a liberdade não existiria. Tudo isso nasce dos atos de desafio a uma vida que se mostra insuficiente ou intolerável. Para esse espírito que despreza a vida como ela é - e, com a insensatez de Dom Quixote, tenta tornar o sonho realidade -, a literatura serve de magnífica espora. A verdade é que o desenvolvimento da mídia audiovisual - que ao mesmo tempo que revoluciona as comunicações monopoliza cada vez mais o tempo que dedicamos ao lazer, relegando a leitura a segundo plano - permite-nos imaginar para um futuro próximo uma sociedade moderníssima, repleta de computadores, telas e microfones, mas sem livros.

Temo que esse mundo cibernético seja profundamente incivilizado, sem espírito, apático - uma resignada humanidade de robôs.

Evidentemente , é muito improvável que essa terrível perspectiva venha algum dia a se concretizar. Não existe um destino que decida por nós o que vamos ser. Depende de nosso discernimento e de nossa vontade que essa utopia macabra se realize ou se apague.

Se queremos evitar o desaparecimento dos romances - ou sua restrição ao sótão dos objetos inúteis - e com isso o desaparecimento da própria fonte que estimula a imaginação e a insatisfação, que refina nossa sensibilidade e nos ensina a falar com eloqüência e precisão, que nos torna livres e nos garante uma vida mais rica e intensa, então devemos agir. Precisamos ler bons livros e incitar à leitura os que vêm depois de nós.

(*) Este texto ao lado é da março de 2003 da revista Seleções Reader's Digest (http://www

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Não se mate, C.Drumond de Andrade



Não se mate


Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê,
pra quê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá.

*********

de Espelho Mágico, M.Quintana


DA OBSERVAÇÃO

Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

Mario Quintana - Espelho Mágico

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Sobre a flor dama -da-noite, de Clarice Lispector, in Água Viva




Dama-da-noite tem perfume de lua cheia.É fantasmagórica e um pouco assustadora e é para quem ama o perigo.Só sai de noite com seu cheiro tonteador.Dama-da-noite é silente.
E também da esquina deserta e em trevas e dos jardins de casas de luzes apagadas e janelas fechadas.
É perigosíssima: é um assobio no escuro, o que ninguém aguenta.Mas eu aguento porque amo o perigo.


O PRESENTE TEXTO É UMA HOMENAGEM A ESTA PESSOA ESPECIAL: ÂNGELA ELLIAS, DO CLIC, E QUE DESCOBRI TER ATENÇÃO A UMA FLOR AMADA TAMBÉM POR MIM.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Horta, Rubem Alves




Uma horta é uma festa para os cinco sentidos. Boa de cheirar, ver, ouvir, tocar e comer. É coisa mágica, erótica, o cio da terra provocando o cio dos homens.

Cheguei de viagem e antes de entrar em casa fui ver a minha horta. O mato crescera muito. Mas minhas plantas também. O verde anunciava uma exuberância de vida, nascida do calor e das chuvas que se alternavam sem parar. O meu coração se alegrou. Pode parecer estranho, mas é pelo coração que me ligo à minha horta. Daí a alegria... Estranho porque para muitos a relação acontece através da boca e do estômago. Horta como o lugar onde crescem as coisas que, no momento próprio, viram saladas, refogados, sopas e suflês. Também isso. Mas não só. Gosto dela, mesmo que não tenha nada para colher. Ou melhor: há sempre o que colher, só que não pra comer.


Semente, sêmen

Horta se parece com filho. Vai acontecendo aos poucos, a gente vai se alegrando a cada momento, cada momento é hora de colheita. Tanto o filho quanto a horta nascem de semeaduras. Semente, sêmen: a coisinha é colocada dentro, seja da mãe/mulher, seja da mãe/terra, e a gente fica esperando, pra ver se o milagre ocorreu, se a vida aconteceu. E quando germina - seja criança, seja planta - é uma sensaçao de euforia, de fertilidade, de vitalidade. Tenho vida dentro de mim! E a gente se sente um semideus, pelo poder de gerar, pela capacidade de despertar o cio da terra.

Não é à toa que povos de tradições milenares ligavam a fertilidade da terra à fertilidade dos homens e das mulheres. Faziam suas celebrações religiosas em meio aos campos recém-semeados, para que o cio humano provocasse a inveja da terra, e ela também se excitasse para o recebimento das sementes. O cio dos homens provocando o cio da terra. Mas o inverso também é verdadeiro: o cio da terra pode provocar o cio dos homens...

Cio é desejo intenso, não dá descanso, invade tudo e provoca sonhos, semente que não se esquece do seu destino, vida querendo fertilizar e ser fertilizada, para crescer. Pois a horta é assim também. Não é coisa só para boca. Se apossa do corpo inteiro, entra pelo nariz, pelos olhos, pelos ouvidos, pela pele, toma conta da imaginação, invoca memórias...


Cheiração beatífica

Horta é coisa boa de se cheirar. Estranho o desprezo com que tratamos o nariz. Os teólogos de outros tempos falavam da “visão beatífica de Deus”. Mas nunca li, em nenhum deles, coisa alguma sobre “a cheiração beatífica de Deus”. Como se fosse indigno que Deus tivesse cheiros, que ele entrasse pelos nossos narizes adentro, por escuros canais até as origens mais primitivas do nosso corpo.

Pois, se eu pudesse, faria uma teologia inspirada na horta, e o meu Deus teria o cheiro das folhas do tomateiro depois de regadas, e também da hortelã, do manjericão, do orégano, do coentro. Essa coisa indefinível, invisível, que entra fundo na nossa alma e daí se irradia para o corpo inteiro como uma onda embriagante, o cheiro é a aura erótica do objeto, sua presença dentro de nós, emanação mágica por meio da qual nós o possuímos. Quem cheira fundo - e para isso até fecha os olhos, porque o cheiro vai mais dentro que os olhos - está dizendo o quanto ama...

E fico pensando nessa coisa curiosa: que a horta só seja percebida como produtora de coisas boas para comer. Isso só pode ser devido a uma degeneração do nosso corpo, de sua imensa riqueza erótica, à monotonia canibalesca que só reconhece o comer como forma de apropriação do objeto. Os cheiros moram na horta, e quem não se dá o trabalho de cultivá-la não pode ter a alegria de reconhecê-los. Há pessoas que se reúnem para ouvir música; outras pelo puro prazer do paladar. Mas ainda não se convidam pessoas para concertos e banquetes de perfumes. O mais próximo seria, talvez, convidá-las para passear pela nossa horta, e ali nos deliciar com a sua perplexidade na medida em que lhes oferecemos folhinhas para cheirar e lhes perguntamos: “Sabe o que é isto? Veja como é gostoso...“


Olhares para a vida

Horta é coisa boa de se ver.
Dizem os poemas sagrados que Deus Todo-Poderoso, depois de criar todas as coisas, parou, deixou cair os braços e foi invadido pelo puro deleite de ver a beleza de tudo o que existia. Ver é experiência estética, não serve para coisa alguma. Diferente do comer. Comer é útil. A mãe insiste com a criança: “Coma o espinafre, meu bem, ele faz você ficar forte.” O “ficar forte” justifica suportar o gosto ruim: é a utilidade da coisa.

Mas nada disso se pode dizer do ato de ver. Ver os espinafres, as couves, as alfaces, os tomates não é útil para coisa alguma, não serve para nada. Mas faz bem à alma. “Não só de pão viverá o homem”, diz o texto sagrado. Vivemos também das coisas belas.

Há o belo das cores: o vermelho dos pimentões, das pimentinhas ardidas, dos tomatinhos... Ah! Os tomatinhos... Falo daqueles pequenos, minúsculos, que não se encontram em lugar civilizado, não se vendem em feiras (quanto poderiam valer?). Mas eu os descobri numa velha fazenda, e não resisti à tentação de trazer uma mudas. Sua maior utilidade, além de serem redondinhos e vermelhos, é serem planta da minha infância. De modo que, na minha horta, eu tenho um arbusto mágico, que me leva através do tempo, e, quando eu os apanho e os como, sinto renascer dentro do meu corpo o corpo de um menino que mora nele.

Há o verde também dos pimentões, que se comprazem em brincar com as cores das cebolinhas, das alfaces, das couves, dos espinafres, da salsa. O amarelo das cenouras, e de novo dos pimentões (vocês já viram pimentões amarelos? São raros, brilhantes, maravilhosos. Eu até tive uma árvore de Natal enfeitada só com pimentões verdes, verrnelhos e amarelos). O roxo das beterrabas, dos rabanetes, das berinjelas. O branco dos nabos.

E ao ver essa abundância de cores imagino que a natureza é brincalhona, ela se compraz na exuberância e no excesso. E enquanto meus olhos vão andando pela variedade das cores, coisas vão acontecendo dentro de mim. Porque isso significa que elas existem dentro de mim. Se eu fosse cego para as cores, não me aperceberia de nenhuma diferença. O objeto que vejo revela um objeto que existe dentro de mim. Os olhos só vêem fora aquilo que já existe dentro como desejo. Tenho também um pé de ora-pro-nóbis, coisa de gente pobre, em Minas Gerais. Só vi referências a ele em dois lugares. Primeiro, no livro Fogão de lenha, de Maria Stella Libânio Christo, como uma receita culinária no meio de uma celebração de 300 anos de cozinha mineira, que vale pelo puro deleite de ler. E depois num poema de Adélia Prado - ela sabe muito bem do encanto das hortas. Ora-pro-nóbis, nome que parece responso litúrgico, é um arbusto que se planta uma vez na vida. Ele é tão amigo que fica lá, soltando folhas sem parar.

Pois é: uma festa. Cores e formas, tudo diferente, natureza brincalhona, artista, imaginação sem fim. Morangas gomosas; aboborões e abobrinhas; quiabos escorregadios; berinjelas roxo-pretas, engraçadas em tudo, até no nome; mandiocas carás de debaixo da terra; carás do ar, pendentes; inhames; chuchus; nabos redondos; nabos fálicos; alcachofras; folhas de todos os desenhos; alfaces; almeirão; acelgas; brócolis; couve; bertalha; repolhos brancos; repolhos roxos; agrião; espinafre. Diante desse esbanjamento de inventividade o jeito é o espanto, o riso e a gratidão de que este seja um mundo onde o enfado é impossível.

(Continua outroo dia).
Amos cores , os aromas de plantas. Coentro é uma delícia...