quarta-feira, 1 de junho de 2011

Horta, Rubem Alves




Uma horta é uma festa para os cinco sentidos. Boa de cheirar, ver, ouvir, tocar e comer. É coisa mágica, erótica, o cio da terra provocando o cio dos homens.

Cheguei de viagem e antes de entrar em casa fui ver a minha horta. O mato crescera muito. Mas minhas plantas também. O verde anunciava uma exuberância de vida, nascida do calor e das chuvas que se alternavam sem parar. O meu coração se alegrou. Pode parecer estranho, mas é pelo coração que me ligo à minha horta. Daí a alegria... Estranho porque para muitos a relação acontece através da boca e do estômago. Horta como o lugar onde crescem as coisas que, no momento próprio, viram saladas, refogados, sopas e suflês. Também isso. Mas não só. Gosto dela, mesmo que não tenha nada para colher. Ou melhor: há sempre o que colher, só que não pra comer.


Semente, sêmen

Horta se parece com filho. Vai acontecendo aos poucos, a gente vai se alegrando a cada momento, cada momento é hora de colheita. Tanto o filho quanto a horta nascem de semeaduras. Semente, sêmen: a coisinha é colocada dentro, seja da mãe/mulher, seja da mãe/terra, e a gente fica esperando, pra ver se o milagre ocorreu, se a vida aconteceu. E quando germina - seja criança, seja planta - é uma sensaçao de euforia, de fertilidade, de vitalidade. Tenho vida dentro de mim! E a gente se sente um semideus, pelo poder de gerar, pela capacidade de despertar o cio da terra.

Não é à toa que povos de tradições milenares ligavam a fertilidade da terra à fertilidade dos homens e das mulheres. Faziam suas celebrações religiosas em meio aos campos recém-semeados, para que o cio humano provocasse a inveja da terra, e ela também se excitasse para o recebimento das sementes. O cio dos homens provocando o cio da terra. Mas o inverso também é verdadeiro: o cio da terra pode provocar o cio dos homens...

Cio é desejo intenso, não dá descanso, invade tudo e provoca sonhos, semente que não se esquece do seu destino, vida querendo fertilizar e ser fertilizada, para crescer. Pois a horta é assim também. Não é coisa só para boca. Se apossa do corpo inteiro, entra pelo nariz, pelos olhos, pelos ouvidos, pela pele, toma conta da imaginação, invoca memórias...


Cheiração beatífica

Horta é coisa boa de se cheirar. Estranho o desprezo com que tratamos o nariz. Os teólogos de outros tempos falavam da “visão beatífica de Deus”. Mas nunca li, em nenhum deles, coisa alguma sobre “a cheiração beatífica de Deus”. Como se fosse indigno que Deus tivesse cheiros, que ele entrasse pelos nossos narizes adentro, por escuros canais até as origens mais primitivas do nosso corpo.

Pois, se eu pudesse, faria uma teologia inspirada na horta, e o meu Deus teria o cheiro das folhas do tomateiro depois de regadas, e também da hortelã, do manjericão, do orégano, do coentro. Essa coisa indefinível, invisível, que entra fundo na nossa alma e daí se irradia para o corpo inteiro como uma onda embriagante, o cheiro é a aura erótica do objeto, sua presença dentro de nós, emanação mágica por meio da qual nós o possuímos. Quem cheira fundo - e para isso até fecha os olhos, porque o cheiro vai mais dentro que os olhos - está dizendo o quanto ama...

E fico pensando nessa coisa curiosa: que a horta só seja percebida como produtora de coisas boas para comer. Isso só pode ser devido a uma degeneração do nosso corpo, de sua imensa riqueza erótica, à monotonia canibalesca que só reconhece o comer como forma de apropriação do objeto. Os cheiros moram na horta, e quem não se dá o trabalho de cultivá-la não pode ter a alegria de reconhecê-los. Há pessoas que se reúnem para ouvir música; outras pelo puro prazer do paladar. Mas ainda não se convidam pessoas para concertos e banquetes de perfumes. O mais próximo seria, talvez, convidá-las para passear pela nossa horta, e ali nos deliciar com a sua perplexidade na medida em que lhes oferecemos folhinhas para cheirar e lhes perguntamos: “Sabe o que é isto? Veja como é gostoso...“


Olhares para a vida

Horta é coisa boa de se ver.
Dizem os poemas sagrados que Deus Todo-Poderoso, depois de criar todas as coisas, parou, deixou cair os braços e foi invadido pelo puro deleite de ver a beleza de tudo o que existia. Ver é experiência estética, não serve para coisa alguma. Diferente do comer. Comer é útil. A mãe insiste com a criança: “Coma o espinafre, meu bem, ele faz você ficar forte.” O “ficar forte” justifica suportar o gosto ruim: é a utilidade da coisa.

Mas nada disso se pode dizer do ato de ver. Ver os espinafres, as couves, as alfaces, os tomates não é útil para coisa alguma, não serve para nada. Mas faz bem à alma. “Não só de pão viverá o homem”, diz o texto sagrado. Vivemos também das coisas belas.

Há o belo das cores: o vermelho dos pimentões, das pimentinhas ardidas, dos tomatinhos... Ah! Os tomatinhos... Falo daqueles pequenos, minúsculos, que não se encontram em lugar civilizado, não se vendem em feiras (quanto poderiam valer?). Mas eu os descobri numa velha fazenda, e não resisti à tentação de trazer uma mudas. Sua maior utilidade, além de serem redondinhos e vermelhos, é serem planta da minha infância. De modo que, na minha horta, eu tenho um arbusto mágico, que me leva através do tempo, e, quando eu os apanho e os como, sinto renascer dentro do meu corpo o corpo de um menino que mora nele.

Há o verde também dos pimentões, que se comprazem em brincar com as cores das cebolinhas, das alfaces, das couves, dos espinafres, da salsa. O amarelo das cenouras, e de novo dos pimentões (vocês já viram pimentões amarelos? São raros, brilhantes, maravilhosos. Eu até tive uma árvore de Natal enfeitada só com pimentões verdes, verrnelhos e amarelos). O roxo das beterrabas, dos rabanetes, das berinjelas. O branco dos nabos.

E ao ver essa abundância de cores imagino que a natureza é brincalhona, ela se compraz na exuberância e no excesso. E enquanto meus olhos vão andando pela variedade das cores, coisas vão acontecendo dentro de mim. Porque isso significa que elas existem dentro de mim. Se eu fosse cego para as cores, não me aperceberia de nenhuma diferença. O objeto que vejo revela um objeto que existe dentro de mim. Os olhos só vêem fora aquilo que já existe dentro como desejo. Tenho também um pé de ora-pro-nóbis, coisa de gente pobre, em Minas Gerais. Só vi referências a ele em dois lugares. Primeiro, no livro Fogão de lenha, de Maria Stella Libânio Christo, como uma receita culinária no meio de uma celebração de 300 anos de cozinha mineira, que vale pelo puro deleite de ler. E depois num poema de Adélia Prado - ela sabe muito bem do encanto das hortas. Ora-pro-nóbis, nome que parece responso litúrgico, é um arbusto que se planta uma vez na vida. Ele é tão amigo que fica lá, soltando folhas sem parar.

Pois é: uma festa. Cores e formas, tudo diferente, natureza brincalhona, artista, imaginação sem fim. Morangas gomosas; aboborões e abobrinhas; quiabos escorregadios; berinjelas roxo-pretas, engraçadas em tudo, até no nome; mandiocas carás de debaixo da terra; carás do ar, pendentes; inhames; chuchus; nabos redondos; nabos fálicos; alcachofras; folhas de todos os desenhos; alfaces; almeirão; acelgas; brócolis; couve; bertalha; repolhos brancos; repolhos roxos; agrião; espinafre. Diante desse esbanjamento de inventividade o jeito é o espanto, o riso e a gratidão de que este seja um mundo onde o enfado é impossível.

(Continua outroo dia).
Amos cores , os aromas de plantas. Coentro é uma delícia...

5 comentários:

  1. Tb tenho uma hortinha aqui em casa.Já deu muita rúcula,alface, salsa e cebolinha. No momento tá fraquinha, mas é muito bom de cheirar, ver e colher, como vc falou.

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  2. Obrigada, Rita!
    Uma horta é festa dos sentidos!

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  3. Eloísa, falávamos outro dia exatamente dos cheiros, lembra? Por isso gosto muito de Rubem Alves, a sensibilidade que ele tem para ver e sentir o mundo, e melhor, de traduzir tão bem nos textos que compõe com maestria. Parabéns pela postagem, é sempre bom ler Rubem Alves...

    Um abraço

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  4. Elô, no seu blog, querida, vou conhecendo-a e admirando-a sempre mais um pouco e gosto do que você me passa. Sabe, sou muito ligada em cheiros, alguns me inspiram e me fazem sonhar. Quando passo no Colégio São Vicente à noite, sinto o cheirinho da DAMA DA NOITE e não tenho vontade de seguir andando, mas parar para ficar me deliciando com o cheiro dela. Bjs. Angela Ellias.

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  5. Dama da noite é uam planta maravilhosa e seu perfume...Vou mandar, ou melhor, vou postar aqui um texto para vc sobre elas.
    Obrigada pela visita e pelo carinho.
    Elô

    Antônio, tanto não me esqueci que trouxe para cá um texto de que falamos. Obrigada pela atenção ao comentário.

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