Aqui estarão registrados textos poéticos, ou não, selecionados por mim e pela simpatia, carinho de amigos. Alguns serão um atrevimento meu, tambores a ressoar neste espaço. E, se quiserem acusar alguém , acusem-me, por favor!
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
Uma crônica de Adélia Prado
2. ADÉLIA PRADO. Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo. Coisa do Teodoro, ele quem me contou, você sabe, marido depois de um certo tempo de casamento fala certas coisas com a mulher. O seu não fala? Pois é, e de novo tem um tempão que aconteceu. Lembra aquela história dos queijos? Igual. Demorou um par de anos pra me contar. O pessoal dele é assim, sem pressa. Tem uma história deles lá, que o pai dele, meu sogro, esperou 52 anos pra relatar. Diz ele que esperou os protagonistas morrerem. Tem condição? Mas o Teodoro — foi quando a gente mudou pra casa nova — teve de ir nas Goiabeiras tratar um marceneiro e passou, pra aproveitar, na casa da tia dele, a Carlina do Afonso, e encontrou lá o Gomide. Tou encompridando, acho que é só por medo do fim, mas agora já comecei, então. Então, diz o Teodoro, que o Gomide tirou do bolso do paletó uma trouxinha de palha de milho, cortadas elas todas iguaizinhas e amarradas com uma embirinha da mesma palha. Escolheu, escolheu, pegou uma bem lisa e bem branquinha, tirou o canivete do outro bolso, lambeu a palha pra lá, pra cá, e ficou um tempão lhe passando firme a lâmina, do meio pras pontas, de ponta a ponta, entremeando com lambidas. Depois, ainda segurando a palha entre os dedos, foi a hora de tirar e picar o fumo de rolo bem fininho. Ia picando e pondo na concha da mão. Acabou, guardou o rolo e ficou socavando o fumo na mão com a ponta do canivete. Depois pegou a palha, mais uma lambida e foi pondo nela o fumo, espalhando ele por igual na canaleta formada, pressionando bem pra ficar bem firme. Deu mais uma lambida na parte mais próxima do fumo e com os polegares e indicadores foi enrolando o cigarro devagarinho, uma enrolada e uma lambida, uma enrolada e uma lambida. Com o canivete dobrou uma das pontas para o fumo não escapar, tirou a binga do bolso, acendeu e pegou a pitar. Agora é que vem, ai, ai. Teodoro falou que o tempo todo da operação ele não despregava o olho daquilo. Disse que nem sabe o que tia Carlina arengava, só punha sentido no Gomide fazendo o pito. Diz ele que foi uma coisa tão esquisita — esquisita, não —, tão encantada que ele ficou de pau duro. É isso. Falou também que ficou doido pra sair dali, comprar palha, fumo de rolo e repetir tudo igualzinho ao Gomide. Eu entendo. Quando conheci o Teodoro, ele fumava e eu achava muito emocionante. Tenho muita saudade de quando não existia essa amolação de cigarro dar câncer, nem de mulher ser magra. A gente tinha mais tempo para o que precisa, não é mesmo? Será que faz mal mesmo? Colesterol, depois de tanto barulho, estão falando que já tem do bom. Qualquer dia vou pedir ao Teodoro pra dar uma fumadinha, só pra fazer tipo.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
Cavalgada-Cecília Meireles
Meu sangue corre como um rio
num grande galope,
num ritmo bravio,
para onde acena a tua mão.
Pelas suas ondas revoltas,
seguem desesperadamente
todas as minhas estrelas soltas,
com a máxima cintilação.
Ouve, no tumulto sombrio,
passar a torrente fantástica!
E, na luta da luz com as trevas,
todos os sonhos que me levas,
dize, ao menos, para onde vão!
Cecília Meireles
Viagem, 1.938
num grande galope,
num ritmo bravio,
para onde acena a tua mão.
Pelas suas ondas revoltas,
seguem desesperadamente
todas as minhas estrelas soltas,
com a máxima cintilação.
Ouve, no tumulto sombrio,
passar a torrente fantástica!
E, na luta da luz com as trevas,
todos os sonhos que me levas,
dize, ao menos, para onde vão!
Cecília Meireles
Viagem, 1.938
sábado, 10 de dezembro de 2011
Miguel Torga: De Profundis...
De profundis
Senhor, que sabes quem sou,
Sabe lá também o resto:
Sabe lá que o meu protesto
Não é isto que tu vês...
Não é isto...
Nem a facada do teu filho Cristo...
Nem o pranto que tens visto
Correr em lava a teus pés...
Não é isto,
Nem o sonho de Babel...
Nem o bombo que fiz da minha pele...
Nem o Credo num Deus que me perdeu...
Foram gestos que passaram
Pelo meu corpo e roubaram
Um perfume que julgaram
Que era meu...
Não é isto, nem aquilo
Que um mocho a cantar de grilo
Te mandou como um sinal
Da grande dor que me dói...
Só é sinal do meu todo
Esta elegia do lodo,
Que não foi...
Não é isto,
Nem o muito que há-de vir:
O sarro que há-de sair
Da vasante da maré...
O fundo do mar é sujo,
Mas nos olhos do marujo
Não se vê...
Não é isto, nem é nada
Que chegue à tua morada
Se, a minha assinatura,
Que sou eu...
Eu, esta ovelha ranhosa
Que remói silenciosa
a lembrança dolorosa
do pastor que lhe bateu...
O Outro livro de Job (1936)
Senhor, que sabes quem sou,
Sabe lá também o resto:
Sabe lá que o meu protesto
Não é isto que tu vês...
Não é isto...
Nem a facada do teu filho Cristo...
Nem o pranto que tens visto
Correr em lava a teus pés...
Não é isto,
Nem o sonho de Babel...
Nem o bombo que fiz da minha pele...
Nem o Credo num Deus que me perdeu...
Foram gestos que passaram
Pelo meu corpo e roubaram
Um perfume que julgaram
Que era meu...
Não é isto, nem aquilo
Que um mocho a cantar de grilo
Te mandou como um sinal
Da grande dor que me dói...
Só é sinal do meu todo
Esta elegia do lodo,
Que não foi...
Não é isto,
Nem o muito que há-de vir:
O sarro que há-de sair
Da vasante da maré...
O fundo do mar é sujo,
Mas nos olhos do marujo
Não se vê...
Não é isto, nem é nada
Que chegue à tua morada
Se, a minha assinatura,
Que sou eu...
Eu, esta ovelha ranhosa
Que remói silenciosa
a lembrança dolorosa
do pastor que lhe bateu...
O Outro livro de Job (1936)
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
O Cavalo de Édipo-C F Abreu.
O Estado de S. Paulo, 24/9/1986
O MISTÉRIO DO CAVALO DE ÉDIPO
Édipo amarrou o seu cavalo?
Perguntou a Medusa para Édipo:
— Escuta aqui, você viu bem onde amarrou seu cavalo? (O cavalo era um Pegasozinho meio de quinta. Mas com asas.)
— Hein? — resmungou Édipo, as rédeas ainda na mão.
— Não faz o distraído comigo que eu te petrifico, viu? — grito a Medusa, que era muito temperamental. — Te conheço não é de hoje.
— Saco — murmurou Édipo. — Sempre onipotente.
Medusa ficou uma fúria:
— Olha nos meus olhos já! — ordenou. — Direto nos meus olhos, seu panaca. Ela olhou fundo nos olhos dele. As cobrinhas da cabeça ficaram em pé. — Considere-se petrificado.
— Naja idiota — bocejou Édipo. — Não vê que sou cego?
Medusa bateu na testa:
— É mesmo! Por Juno, eu tinha esquecido.
Sei, sei. O enigma, Tebas, Jocasta, aquela baixaria toda.
Cuspiu de lado: — Tarado.
Édipo ia reagir quando chegou Perséfone: percebeu pelo excesso de perfume no ar. Sim, pensou, Perséfone tinha mesmo ficado meio tang demais depois de superada aquela horrível fase darkno Hades.
— Édipo, meu gato! — ela gritou. — Nossa, quanto tempo. Desde aquela tarde em Elêusis, quem diria? — Começou a falar outra abobrinha qualquer, mas interrompeu-se com um grito: — Por Palas-Atena, baby: Você viu bem onde amarrou seu cavalo?
— Perua! — interrompeu a Medusa. — Eu já dei o toque pra ele. Perséfone fez que não ouviu. Já tinham rolado uns lances entre elas no verão passado, em Creta (Medusa calçava bico largo). Super-heavy: Perséfone preferiu tirar o time. Mais ainda depois que conhecera Teseu, na musculação. Insistiu, como se Medusa não existisse:
— Mas me diz, meu bem: você viu onde amarrou seu cavalo?
— Eu não vejo, pô — rosnou Édipo. — E você que vê, por Cronos, poderia me fazer o enorme favor de dizer, Parcas, onde...
Perséfone era muito dispersiva. Nesse momento olhou para cima e viu o inconfundível acrílico da asa-delta de Ícaro.
Chamou:
— Ícaro! Ícaro, desça já-já aqui, seu piradinho!
Ícaro desceu. Não porque tivesse ouvido (ao voar, usava sempre headphones com som de Phillip Glass: dava o maior clima), mas por coincidência tinha olhado para baixo e visto os três. Quatro com Pégaso.
— E aí, lasanha? Dando banda? — Perséfone era demais galinha.
— Estou procurando Apoio — respondeu Ícaro, muito digno.
Baixo-astral como era, Medusa não perdeu a oportunidade:
— Apolo? Acabei de vê-lo com Narciso, nos Jardins com as Hespérides. Aliás, nunca vi Narciso tão bonito. Herítia apresentou uns pomos pra eles, e você precisava ver, que gracinha, Apoio dando pedacinhos pra ele...
Ícaro ficou lívido. Estava a ponto de rodar a cariátide quando Perséfone, diplornatiquérrima (era Libra), cortou:
—Você conhece Édipo, Ícaro?
— Prazer — disse Ícaro, estendendo a mão. — Ícaro.
— Édipo — disse Édipo, uma mão nas rédeas, outra tateando no ar. — Escuta, você não é o filho de Dédalo?
— Você conhece meu pai? Ele... — Ícaro parecia encantado, mas interrompeu-se com um grito: — Por Vulcano, Édipo! Você viu bem onde amarrou seu cavalo?
Foi então que Édipo sacou que a situação era realmente grave. Soltou as rédeas e disse aquela frase que acabou entrando para a História: — Por Zeus, vocês que vêem querem parar com essa galinhagem e me dizer de uma vez por todas: onde foi que eu vim amarrar meu cavalo? [3]
O Estado de S. Paulo,
O MISTÉRIO DO CAVALO DE ÉDIPO
Édipo amarrou o seu cavalo?
Perguntou a Medusa para Édipo:
— Escuta aqui, você viu bem onde amarrou seu cavalo? (O cavalo era um Pegasozinho meio de quinta. Mas com asas.)
— Hein? — resmungou Édipo, as rédeas ainda na mão.
— Não faz o distraído comigo que eu te petrifico, viu? — grito a Medusa, que era muito temperamental. — Te conheço não é de hoje.
— Saco — murmurou Édipo. — Sempre onipotente.
Medusa ficou uma fúria:
— Olha nos meus olhos já! — ordenou. — Direto nos meus olhos, seu panaca. Ela olhou fundo nos olhos dele. As cobrinhas da cabeça ficaram em pé. — Considere-se petrificado.
— Naja idiota — bocejou Édipo. — Não vê que sou cego?
Medusa bateu na testa:
— É mesmo! Por Juno, eu tinha esquecido.
Sei, sei. O enigma, Tebas, Jocasta, aquela baixaria toda.
Cuspiu de lado: — Tarado.
Édipo ia reagir quando chegou Perséfone: percebeu pelo excesso de perfume no ar. Sim, pensou, Perséfone tinha mesmo ficado meio tang demais depois de superada aquela horrível fase darkno Hades.
— Édipo, meu gato! — ela gritou. — Nossa, quanto tempo. Desde aquela tarde em Elêusis, quem diria? — Começou a falar outra abobrinha qualquer, mas interrompeu-se com um grito: — Por Palas-Atena, baby: Você viu bem onde amarrou seu cavalo?
— Perua! — interrompeu a Medusa. — Eu já dei o toque pra ele. Perséfone fez que não ouviu. Já tinham rolado uns lances entre elas no verão passado, em Creta (Medusa calçava bico largo). Super-heavy: Perséfone preferiu tirar o time. Mais ainda depois que conhecera Teseu, na musculação. Insistiu, como se Medusa não existisse:
— Mas me diz, meu bem: você viu onde amarrou seu cavalo?
— Eu não vejo, pô — rosnou Édipo. — E você que vê, por Cronos, poderia me fazer o enorme favor de dizer, Parcas, onde...
Perséfone era muito dispersiva. Nesse momento olhou para cima e viu o inconfundível acrílico da asa-delta de Ícaro.
Chamou:
— Ícaro! Ícaro, desça já-já aqui, seu piradinho!
Ícaro desceu. Não porque tivesse ouvido (ao voar, usava sempre headphones com som de Phillip Glass: dava o maior clima), mas por coincidência tinha olhado para baixo e visto os três. Quatro com Pégaso.
— E aí, lasanha? Dando banda? — Perséfone era demais galinha.
— Estou procurando Apoio — respondeu Ícaro, muito digno.
Baixo-astral como era, Medusa não perdeu a oportunidade:
— Apolo? Acabei de vê-lo com Narciso, nos Jardins com as Hespérides. Aliás, nunca vi Narciso tão bonito. Herítia apresentou uns pomos pra eles, e você precisava ver, que gracinha, Apoio dando pedacinhos pra ele...
Ícaro ficou lívido. Estava a ponto de rodar a cariátide quando Perséfone, diplornatiquérrima (era Libra), cortou:
—Você conhece Édipo, Ícaro?
— Prazer — disse Ícaro, estendendo a mão. — Ícaro.
— Édipo — disse Édipo, uma mão nas rédeas, outra tateando no ar. — Escuta, você não é o filho de Dédalo?
— Você conhece meu pai? Ele... — Ícaro parecia encantado, mas interrompeu-se com um grito: — Por Vulcano, Édipo! Você viu bem onde amarrou seu cavalo?
Foi então que Édipo sacou que a situação era realmente grave. Soltou as rédeas e disse aquela frase que acabou entrando para a História: — Por Zeus, vocês que vêem querem parar com essa galinhagem e me dizer de uma vez por todas: onde foi que eu vim amarrar meu cavalo? [3]
O Estado de S. Paulo,
quarta-feira, 16 de novembro de 2011
Drummond, uma paixão!
O AMOR ANTIGO
O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.
Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém,
nunca fenece e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste?
Não.
Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.
Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém,
nunca fenece e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste?
Não.
Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
domingo, 13 de novembro de 2011
Faz tempo ...e andava perdido: TRIGO.
Com uma receita de trigo
A mulher sentou , pesou , mediu
Mexeu , mexeu
Bateu
Suspirou!
O trigo e fermento, com lágrimas banhou
Abriu as janelas,
Olhou a cidade, surpresa:
Tudo de branco se cobria
Tudo melado
_ Dentro da pia, da tigela,
o trigo com fermento sumira.
E as lágrimas?
Estas, ainda vertia!
Eloisa
....
quarta-feira, 9 de novembro de 2011
terça-feira, 8 de novembro de 2011
Praia da Boa Viagem...quantas viagens!
'De cócoras deixei-me ficar no meio da trilha da Boa Viagem.Depois da chuva e da ventania restou uma brisa suave vinda do sul. Eu estava cercado pelo perfume da terra e da mata e pelo aroma de oceano que a brisa trazia."Carlos Rosa Moreira, A Montanha, O Mar , A cidade.
Quantas hitórias esta praia tem para contar? Aos dez quase me afoguei, aos vinte e tal, contei mais estrelas do que jamais contaria na vida. Linda, linda , esta paisagem! Belas tarde de praia, de investigações mentais: quando é que o mar se acaba,Elô?! Um poema para tuas mãos , minha flor!
Ah...um pouco de poesia para sempre ali ficaria.
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
Eu, aos quinze anos-Imortalidade
O livro A MONTANHA, O MAR, A CIDADE, de Carlos Rosa Moreira, um livro de crônicas poéticas sobre Niterói, basicamentete, embora fale em outra cidades do mundo, faz-nos viajar em busca do tempo. Isso , às vezes, é bom, devolve ternuras, perfumes, relembranças de amores, de situações.E dentre as crônicas mais comentadas pelo grupo CLIc, está a crônica Imortalidade. Ela vive na lembrança de muitas moças. Vejam um trechinho dela :
"sacrificio recompensado no momento em que dançou a valsa coma filha."(....) E mais adiante:
"Então com um sorriso nos lábios, o pai afastou-se do mundo dos jovens. Mas não deixou um só instante de admirar a deliciosa felicidade estampada no rosto da filha que ele tornara princesa naquela noite."
Eu agradeço a você Ricardo , meu "paidrasto", a ilusão que foi mais sua naquele dia.
Eu fico com a imagem desta foto, com os dias inesquecíveis que antecederam aquela festa, e ainda hoje me volto para Un bar aux Folies-Bergère.
A gente pinta aquilo que a gente quer ou aquilo que o mundo espera?
sábado, 22 de outubro de 2011
XV- Charles Baudelaire
O BOLO
Eu viajava. A paisagem no meio da qual eu estava era de uma grandiosidade e de uma nobreza irresistíveis. Alguma coisa passava-se, sem dúvida, nesse momento em minha alma. Meus pensamentos giravam com uma leveza igual à da atmosfera; as paixões vulgares, tais como a ira e o amor profano, pareciam-me agora tão distantes quanto as nuvens que desfilavam no fundo dos abismos sob meus pés; minha alma parecia tão vasta e tão pura quanto a cúpula do céu que me envolvia; a lembrança das coisas terrestres não chegava a meu coração a não ser atenuada e diminuída como o som dos sininhos de animais imperceptíveis que pastavam ao longe, bem longe, na vertente de uma outra montanha. Sobre o pequeno lago imóvel, negro pela sua imensa profundidade, passava, vez por outra, a sombra de uma nuvem, como o reflexo do capote de um gigante voando através do céu. E me lembro que essa sensação solene e rara, causada por um grande movimento completamente silencioso, enchia-me de alegria misturada com medo. Ou seja, eu me sentia, graças à entusiasmante beleza pela qual estava envolvido, em perfeita paz comigo e com o universo; creio mesmo que, em minha perfeita beatitude e total esquecimento de todo o mal terrestre, acabei por não achar mais ridículos os jornais que pretendem que o homem nasce bom — nisso, como a matéria incurável renovasse suas exigências, sonhei descansar da fadiga e aliviar o apetite causados por uma tão longa ascensão. Tirei de minha bolsa um grande pedaço de pão, uma xícara de couro e um frasco de um certo elixir que os farmacêuticos, naquele tempo, vendiam aos turistas para. na ocasião, misturar com a água da neve.
Estava cortando tranqüilamente o meu pão quando um ruído muito leve fez-me levantar os olhos. Diante de mim encontrava-se um pequeno ser esfarrapado, negro, descabelado, cujos olhos escavados, ferozes e como que suplicantes devoravam o pedaço de pão. Eu o ouvi suspirar em voz baixa e rouca a palavra: bolo! Não pude me impedir de rir, escutando o termo que ele empregava para louvar meu pão quase branco, e eu, então, cortei uma bela fatia e ofereci a ele. Ele aproximou-se, lentamente, sem tirar os olhos do objeto de sua cobiça; depois, agarrando o pedaço com a mão, recuou, rapidamente, como temendo que minha oferta não fosse sincera ou que eu já me tivesse arrependido.
Mas, no mesmo instante, foi derrubado por um outro pequeno selvagem, saído não sei de onde e tão perfeitamente semelhante ao primeiro que se poderia tomá-lo por seu irmão gêmeo. Juntos eles rolaram pelo chão disputando a preciosa presa, nenhum deles querendo, sem dúvida, sacrificar a metade para seu irmão, O primeiro, exasperado, agarrou o segundo pelos cabelos; este, por sua vez, segurou o outro pela orelha com os dentes e cuspiu uma pequena quantidade de sangue com um soberbo xingamento em patoá. O legítimo proprietário do bolo tentou enfiar suas pequenas unhas nos olhos do usurpador; por sua vez este aplicou todas as suas forças para estrangular o adversário com uma das mãos, enquanto com a outra tratava de meter no bolso o prêmio do combate. Mas, reavivado pelo desespero. o vencido voltou a atacar e botou o vencedor por terra com uma cabeçada no estômago. Como descrever uma luta tão feia que durou, na verdade, mais tempo que as forças infantis pareciam prometer? O bolo viajara de mão em mão e mudara de bolsos a cada instante: mas, oh! mudara também de volume; e até que, por fim, extenuados, ofegantes, sangrando, eles pararam por impossibilidade de continuar, pois não havia mais, a bem dizer, nenhum motivo de briga: o pedaço de pão tinha desaparecido, espalhado pelo chão em forma de migalhas semelhantes a grãos de areia, com os quais estava misturado.
Este espetáculo havia-me ensombrecido a paisagem e a calma alegria onde se deleitava minha alma, antes de ver esses pequenos homens, tinha desaparecido totalmente; fiquei triste durante muito tempo, repetindo-me sem cessar: “Existe um soberbo país onde o pão se chama bolo, guloseima tão rara que é suficiente para engendrar uma guerra perfeitamente fratricida!"
Eu viajava. A paisagem no meio da qual eu estava era de uma grandiosidade e de uma nobreza irresistíveis. Alguma coisa passava-se, sem dúvida, nesse momento em minha alma. Meus pensamentos giravam com uma leveza igual à da atmosfera; as paixões vulgares, tais como a ira e o amor profano, pareciam-me agora tão distantes quanto as nuvens que desfilavam no fundo dos abismos sob meus pés; minha alma parecia tão vasta e tão pura quanto a cúpula do céu que me envolvia; a lembrança das coisas terrestres não chegava a meu coração a não ser atenuada e diminuída como o som dos sininhos de animais imperceptíveis que pastavam ao longe, bem longe, na vertente de uma outra montanha. Sobre o pequeno lago imóvel, negro pela sua imensa profundidade, passava, vez por outra, a sombra de uma nuvem, como o reflexo do capote de um gigante voando através do céu. E me lembro que essa sensação solene e rara, causada por um grande movimento completamente silencioso, enchia-me de alegria misturada com medo. Ou seja, eu me sentia, graças à entusiasmante beleza pela qual estava envolvido, em perfeita paz comigo e com o universo; creio mesmo que, em minha perfeita beatitude e total esquecimento de todo o mal terrestre, acabei por não achar mais ridículos os jornais que pretendem que o homem nasce bom — nisso, como a matéria incurável renovasse suas exigências, sonhei descansar da fadiga e aliviar o apetite causados por uma tão longa ascensão. Tirei de minha bolsa um grande pedaço de pão, uma xícara de couro e um frasco de um certo elixir que os farmacêuticos, naquele tempo, vendiam aos turistas para. na ocasião, misturar com a água da neve.
Estava cortando tranqüilamente o meu pão quando um ruído muito leve fez-me levantar os olhos. Diante de mim encontrava-se um pequeno ser esfarrapado, negro, descabelado, cujos olhos escavados, ferozes e como que suplicantes devoravam o pedaço de pão. Eu o ouvi suspirar em voz baixa e rouca a palavra: bolo! Não pude me impedir de rir, escutando o termo que ele empregava para louvar meu pão quase branco, e eu, então, cortei uma bela fatia e ofereci a ele. Ele aproximou-se, lentamente, sem tirar os olhos do objeto de sua cobiça; depois, agarrando o pedaço com a mão, recuou, rapidamente, como temendo que minha oferta não fosse sincera ou que eu já me tivesse arrependido.
Mas, no mesmo instante, foi derrubado por um outro pequeno selvagem, saído não sei de onde e tão perfeitamente semelhante ao primeiro que se poderia tomá-lo por seu irmão gêmeo. Juntos eles rolaram pelo chão disputando a preciosa presa, nenhum deles querendo, sem dúvida, sacrificar a metade para seu irmão, O primeiro, exasperado, agarrou o segundo pelos cabelos; este, por sua vez, segurou o outro pela orelha com os dentes e cuspiu uma pequena quantidade de sangue com um soberbo xingamento em patoá. O legítimo proprietário do bolo tentou enfiar suas pequenas unhas nos olhos do usurpador; por sua vez este aplicou todas as suas forças para estrangular o adversário com uma das mãos, enquanto com a outra tratava de meter no bolso o prêmio do combate. Mas, reavivado pelo desespero. o vencido voltou a atacar e botou o vencedor por terra com uma cabeçada no estômago. Como descrever uma luta tão feia que durou, na verdade, mais tempo que as forças infantis pareciam prometer? O bolo viajara de mão em mão e mudara de bolsos a cada instante: mas, oh! mudara também de volume; e até que, por fim, extenuados, ofegantes, sangrando, eles pararam por impossibilidade de continuar, pois não havia mais, a bem dizer, nenhum motivo de briga: o pedaço de pão tinha desaparecido, espalhado pelo chão em forma de migalhas semelhantes a grãos de areia, com os quais estava misturado.
Este espetáculo havia-me ensombrecido a paisagem e a calma alegria onde se deleitava minha alma, antes de ver esses pequenos homens, tinha desaparecido totalmente; fiquei triste durante muito tempo, repetindo-me sem cessar: “Existe um soberbo país onde o pão se chama bolo, guloseima tão rara que é suficiente para engendrar uma guerra perfeitamente fratricida!"
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
CONFIANÇA-Miguel Torga
CONFIANÇA
O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova...
Miguel Torga
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
Exposição mostra como Oswald de Andrade antecipou discussão sobre direitos autorais | Jornal Correio do Brasil
Exposição mostra como Oswald de Andrade antecipou discussão sobre direitos autorais | Jornal Correio do Brasil
Em São Paulo, Museu da Língua Portuguesa.
Aberta no último dia 27, a exposição com o título Oswald de Andrade: O Culpado de Tudo usa elementos de linguagem contemporâneos para retratar a vida e a obra, elementos indissociáveis, do artista. “Há uma dimensão poético-literária, um histórico e uma dimensão pouco conhecida que é a ensaísta”, explica Machado.
http://correiodobrasil.com.br/exposicao-mostra-como-oswald-de-andrade-antecipou-discussao-sobre-direitos-autorais/309424/
Em São Paulo, Museu da Língua Portuguesa.
Aberta no último dia 27, a exposição com o título Oswald de Andrade: O Culpado de Tudo usa elementos de linguagem contemporâneos para retratar a vida e a obra, elementos indissociáveis, do artista. “Há uma dimensão poético-literária, um histórico e uma dimensão pouco conhecida que é a ensaísta”, explica Machado.
http://correiodobrasil.com.br/exposicao-mostra-como-oswald-de-andrade-antecipou-discussao-sobre-direitos-autorais/309424/
terça-feira, 4 de outubro de 2011
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
Talvez - Pablo Neruda
Talvez
Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a min
ha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,
E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...
Pablo Neruda
Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a min
ha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,
E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...
Pablo Neruda
Quintana, uma paixão...
"Um bom poema é aquele que nos dá a impressão
de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!"
Mario Quintana
de que está lendo a gente ... e não a gente a ele!"
Mario Quintana
TALVEZ- Pablo Neruda
Talvez
Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,
E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...
Pablo Neruda
Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,
E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...
Pablo Neruda
quarta-feira, 21 de setembro de 2011
Norma associou o vídeo ao livro do mês
http://www.youtube.com/watch?v=KF48xJpjq6I
Ela me diz acho que o vídeo tem tudo a ver com mensagem do livro a máquina de fazer espanhóis- hugo terra mãe.
Eu também penso que possa ter.
Obrigada, amiga!
Ela me diz acho que o vídeo tem tudo a ver com mensagem do livro a máquina de fazer espanhóis- hugo terra mãe.
Eu também penso que possa ter.
Obrigada, amiga!
terça-feira, 13 de setembro de 2011
domingo, 21 de agosto de 2011
Arthur Schopenhauer é o bicho!!
Viver é sofrer
No sistema de Schopenhauer, a vontade é a raiz metafísica do mundo e da conduta humana; ao mesmo tempo, e a fonte de todos os sofrimentos. Sua filosofia é, assim, profundamente pessimista, pois a vontade é concebida em seu sistema como algo sem nenhuma meta ou finalidade, um querer irracional e inconsciente. Sendo um mal inerente à existência do homem, ela gera a dor, necessária e inevitavelmente, aquilo que se conhece como felicidade seria apenas a interrupção temporária de um processo de infelicidade e somente a lembrança de um sofrimento passado criaria a ilusão de um bem presente. Para Schopenhauer, o prazer é momento fugaz de ausência de dor e não existe satisfação durável. Todo prazer é ponto de partida de novas aspirações, sempre obstadas e sempre em luta por sua realização: “Viver e sofrer”.
Mas, apesar de todo seu profundo pessimismo, a filosofia de Schopenhauer aponta algumas vias para a suspensão da dor. Num primeiro momento, o caminho para a supressão da dor encontra-se na contemplação artística. A contemplação desinteressada das idéias seria um ato de intuição artística e permitiria a contemplação da vontade em si mesma, o que, por sua vez, conduziria ao domínio da própria vontade. Na arte, a relação entre a vontade e a representação inverte-se, a inteligência passa a uma posição superior e assiste à história de sua própria vontade; em outros termos, a inteligência deixa de ser atriz para ser espectadora. A atividade artística revelaria as idéias eternas através de diversos graus, passando sucessivamente pela arquitetura, escultura, pintura, poesia lírica, poesia trágica, e, finalmente, pela música. Em Schopenhauer, pela primeira vez na história da filosofia, a música ocupa o primeiro lugar entre todas as artes. Liberta de toda referência específica aos diversos objetos da vontade, a música poderia exprimir a Vontade em sua essência geral e indiferenciada, constituindo um meio capaz de propor a libertação do homem, em face dos diferentes aspectos assumidos pela Vontade.
Elô diz:
O que me encanta:
" o caminho para a supressão da dor encontra-se na contemplação artística"
O texto foi retirado do site Cultura Bbrasileira.
No sistema de Schopenhauer, a vontade é a raiz metafísica do mundo e da conduta humana; ao mesmo tempo, e a fonte de todos os sofrimentos. Sua filosofia é, assim, profundamente pessimista, pois a vontade é concebida em seu sistema como algo sem nenhuma meta ou finalidade, um querer irracional e inconsciente. Sendo um mal inerente à existência do homem, ela gera a dor, necessária e inevitavelmente, aquilo que se conhece como felicidade seria apenas a interrupção temporária de um processo de infelicidade e somente a lembrança de um sofrimento passado criaria a ilusão de um bem presente. Para Schopenhauer, o prazer é momento fugaz de ausência de dor e não existe satisfação durável. Todo prazer é ponto de partida de novas aspirações, sempre obstadas e sempre em luta por sua realização: “Viver e sofrer”.
Mas, apesar de todo seu profundo pessimismo, a filosofia de Schopenhauer aponta algumas vias para a suspensão da dor. Num primeiro momento, o caminho para a supressão da dor encontra-se na contemplação artística. A contemplação desinteressada das idéias seria um ato de intuição artística e permitiria a contemplação da vontade em si mesma, o que, por sua vez, conduziria ao domínio da própria vontade. Na arte, a relação entre a vontade e a representação inverte-se, a inteligência passa a uma posição superior e assiste à história de sua própria vontade; em outros termos, a inteligência deixa de ser atriz para ser espectadora. A atividade artística revelaria as idéias eternas através de diversos graus, passando sucessivamente pela arquitetura, escultura, pintura, poesia lírica, poesia trágica, e, finalmente, pela música. Em Schopenhauer, pela primeira vez na história da filosofia, a música ocupa o primeiro lugar entre todas as artes. Liberta de toda referência específica aos diversos objetos da vontade, a música poderia exprimir a Vontade em sua essência geral e indiferenciada, constituindo um meio capaz de propor a libertação do homem, em face dos diferentes aspectos assumidos pela Vontade.
Elô diz:
O que me encanta:
" o caminho para a supressão da dor encontra-se na contemplação artística"
O texto foi retirado do site Cultura Bbrasileira.
quinta-feira, 18 de agosto de 2011
Despedida
Adeus. Vão, vão ser amigos de outros, que talvez os julguem inúteis, não se iludam.O mundo está muito mudado.
Eu me separo de vocês, sem poder olhar muito. Se ficar acariciando cada um, não os deixo partir. Vocês me acompanharam durante muito tempo. Não são os primeiros a partir. Já deixei outros tomarem novos rumos. No entanto, uma certa dor se faz presente, bem de leve no
nício.Foram quantos anos? Já perdi a conta. Ou melhor, não quero fazê-la. Juntamos muitas horas, noites, tardes, momentos de sol e de chuva, de calor e de frio, de alegrias e descobertas. Cheirei-os, apalpei-os. Abracei –os ,muitas vezes em luta, nas corridas contra o tempo. Vocês me deram muitas alegrias, muitas mesmo! É parte da minha vida que se vai, que segue agora numa ...Não, não vou dizer...Não se preocupem , aos poucos outros também irão. Querem ouvir o réquiem antes da partida? Ou será melhor cantar “Felicidade foi-se embora...”Não me chamem de dramática! A vida é dramática. Ela nos tira o que mais amamos, de forma inexorável. Então , antes que ela me tire, eu os mando a quem talvez possa também amá-los, não tanto quanto os amei. Cada um de vocês me fazia poemas, quando olhava para uma criança, um jovem, que também entendia o quanto vocês valiam para mim e para eles.
Eu disse que o mundo está muito mudado, mas talvez possamos ter esperanças. Pode haver mais meninas, meninos, que os recolham com avidez de quem quer saber mais!
Vão na paz, pilha de livros didáticos!
Com todo amor, uma sempre professora apaixonada!
Eu me separo de vocês, sem poder olhar muito. Se ficar acariciando cada um, não os deixo partir. Vocês me acompanharam durante muito tempo. Não são os primeiros a partir. Já deixei outros tomarem novos rumos. No entanto, uma certa dor se faz presente, bem de leve no
nício.Foram quantos anos? Já perdi a conta. Ou melhor, não quero fazê-la. Juntamos muitas horas, noites, tardes, momentos de sol e de chuva, de calor e de frio, de alegrias e descobertas. Cheirei-os, apalpei-os. Abracei –os ,muitas vezes em luta, nas corridas contra o tempo. Vocês me deram muitas alegrias, muitas mesmo! É parte da minha vida que se vai, que segue agora numa ...Não, não vou dizer...Não se preocupem , aos poucos outros também irão. Querem ouvir o réquiem antes da partida? Ou será melhor cantar “Felicidade foi-se embora...”Não me chamem de dramática! A vida é dramática. Ela nos tira o que mais amamos, de forma inexorável. Então , antes que ela me tire, eu os mando a quem talvez possa também amá-los, não tanto quanto os amei. Cada um de vocês me fazia poemas, quando olhava para uma criança, um jovem, que também entendia o quanto vocês valiam para mim e para eles.
Eu disse que o mundo está muito mudado, mas talvez possamos ter esperanças. Pode haver mais meninas, meninos, que os recolham com avidez de quem quer saber mais!
Vão na paz, pilha de livros didáticos!
Com todo amor, uma sempre professora apaixonada!
terça-feira, 16 de agosto de 2011
segunda-feira, 15 de agosto de 2011
quinta-feira, 11 de agosto de 2011
Um da Lya
"...Sou boa sou má,
sou verdadeira sou desonesta,
sou lúcida sou louca,
cresço ou permaneço,
amo ou abandono,ajudo ou torturo
- e assim,com o leque das possibilidades,
me foi dado o tormento das opções..."
.
Lya Luft
sou verdadeira sou desonesta,
sou lúcida sou louca,
cresço ou permaneço,
amo ou abandono,ajudo ou torturo
- e assim,com o leque das possibilidades,
me foi dado o tormento das opções..."
.
Lya Luft
quarta-feira, 20 de julho de 2011
No Dia do Amigo...Guimarães Rosa
Amigo para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou - o amigo - é que a gente seja, mas sem precisar de saber por quê é que é.
In: Grande Sertão: Veredas
...a gente carece de fingir às vezes que raiva tem,
mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter.
Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma
coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe
durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente.
In: Grande Sertão: Veredas
segunda-feira, 11 de julho de 2011
Uma beleza de O Leque Secreto., Lisa See
Você está sempre cantando no meu coração.
Penso em você todos os dias.
Pag.201-Flor da Neve e O Leque Secreto, Lisa See
Penso em você todos os dias.
Pag.201-Flor da Neve e O Leque Secreto, Lisa See
domingo, 3 de julho de 2011
Façamos (vamos amar) Chico Buarque e Elza Soares
Homenagem ao filme Meia-Noite em Paris( lá quem canta é Cole Porter)
quarta-feira, 29 de junho de 2011
A Volta do parafuso
Henry James
"A volta do parafuso
A outra volta do parafuso conta a história da jovem filha de um pároco que, iniciando-se na carreira de professora, aceita mudar-se para a propriedade de Bly, em Essex, arredores de Londres. Seu patrão é tio e tutor de duas crianças, Flora e Miles, cujos pais morreram na Índia, e deseja que a narradora (que não é nomeada) seja a governanta da casa de Bly. Ao chegar a Essex, a jovem logo percebe que duas aparições, atribuídas a antigos criados já mortos, assombram a casa. O triunfo íntimo da protagonista, mais que desvendar o mistério de Bly, consiste em vencer o silêncio imposto pela diferença de condição social entre ela e seus pequenos alunos.
Desde que foi publicada, sucessivas gerações de leitores, críticos e artistas têm se inspirado na maestria narrativa desta novela, cuja tradução de Paulo Henriques Britto reconstitui com precisão a elegante contundência do original inglês."
Henry JamesNasceu em 1843 em Washington Place, Nova York, descendente de ancestrais escoceses e irlandeses. Seu pai era um eminente teólogo e filósofo, e seu irmão mais velho, William, também se tornou famoso como filósofo. James estudou em escolas em Nova York e, mais tarde, em Londres, Paris e Genebra; em 1862, cursou a faculdade de direito de Harvard por um curto período. Em 1865 começou a publicar resenhas e contos em periódicos norte-americanos. Já adulto, fez duas viagens à Europa, e em 1875 mudou-se para Paris, onde conheceu Flaubert, Turguêniev e outras figuras do mundo literário. Um ano depois, porém, mudou-se para Londres, onde foi tamanho seu sucesso na sociedade que confessou ter aceitado 107 convites apenas no inverno de 1878-9. Em 1898 mudou-se de Londres e foi morar na Lamb House, em Rye, Sussex. Henry James naturalizou-se britânico em 1915, e foi agraciado com a Ordem do Mérito em 1916, pouco antes de morrer, em fevereiro do mesmo ano. Além de inúmeros contos, peças teatrais, livros de crítica literária, textos biográficos e autobiográficos e muitos escritos de viagens, James escreveu cerca de vinte romances, dos quais o primeiro, Watch and ward, foi lançado como folhetim na Atlantic Monthly em 1871. Sua novela Daisy Miller (1878) tornou-o um escritor conhecido em ambas as margens do Atlântico. Entre outros romances, publicou Roderick Hudson (1875), The American (1877), The Europeans (1878), Washington Square (1880), The portrait of a lady (1881), The Bostonians (1886), The Princess Casamassima (1886), The tragic muse (1890), The spoils of Poynton (1897), What Maisie knew [Pelos olhos de Maisie] (1897), The awkward age (1899), The wings of the dove (1902), The ambassadors (1903) e The golden bowl (1904).
"A volta do parafuso
A outra volta do parafuso conta a história da jovem filha de um pároco que, iniciando-se na carreira de professora, aceita mudar-se para a propriedade de Bly, em Essex, arredores de Londres. Seu patrão é tio e tutor de duas crianças, Flora e Miles, cujos pais morreram na Índia, e deseja que a narradora (que não é nomeada) seja a governanta da casa de Bly. Ao chegar a Essex, a jovem logo percebe que duas aparições, atribuídas a antigos criados já mortos, assombram a casa. O triunfo íntimo da protagonista, mais que desvendar o mistério de Bly, consiste em vencer o silêncio imposto pela diferença de condição social entre ela e seus pequenos alunos.
Desde que foi publicada, sucessivas gerações de leitores, críticos e artistas têm se inspirado na maestria narrativa desta novela, cuja tradução de Paulo Henriques Britto reconstitui com precisão a elegante contundência do original inglês."
Henry JamesNasceu em 1843 em Washington Place, Nova York, descendente de ancestrais escoceses e irlandeses. Seu pai era um eminente teólogo e filósofo, e seu irmão mais velho, William, também se tornou famoso como filósofo. James estudou em escolas em Nova York e, mais tarde, em Londres, Paris e Genebra; em 1862, cursou a faculdade de direito de Harvard por um curto período. Em 1865 começou a publicar resenhas e contos em periódicos norte-americanos. Já adulto, fez duas viagens à Europa, e em 1875 mudou-se para Paris, onde conheceu Flaubert, Turguêniev e outras figuras do mundo literário. Um ano depois, porém, mudou-se para Londres, onde foi tamanho seu sucesso na sociedade que confessou ter aceitado 107 convites apenas no inverno de 1878-9. Em 1898 mudou-se de Londres e foi morar na Lamb House, em Rye, Sussex. Henry James naturalizou-se britânico em 1915, e foi agraciado com a Ordem do Mérito em 1916, pouco antes de morrer, em fevereiro do mesmo ano. Além de inúmeros contos, peças teatrais, livros de crítica literária, textos biográficos e autobiográficos e muitos escritos de viagens, James escreveu cerca de vinte romances, dos quais o primeiro, Watch and ward, foi lançado como folhetim na Atlantic Monthly em 1871. Sua novela Daisy Miller (1878) tornou-o um escritor conhecido em ambas as margens do Atlântico. Entre outros romances, publicou Roderick Hudson (1875), The American (1877), The Europeans (1878), Washington Square (1880), The portrait of a lady (1881), The Bostonians (1886), The Princess Casamassima (1886), The tragic muse (1890), The spoils of Poynton (1897), What Maisie knew [Pelos olhos de Maisie] (1897), The awkward age (1899), The wings of the dove (1902), The ambassadors (1903) e The golden bowl (1904).
Elenir me mandou e eu completo sobre Meia- noite em Paris
Elenir
Transcrevo o texto de Cora Rónai, no Globo, de 23/06, sobre o filme (não consegui colá-lo aqui):
"Wood Allen, felizmente, não aderiu à onda, "Meia-noite em Paris", filmado em magnífico 2D, é uma espécie de "Rosa púrpura do Cairo" ao contrário, a realização das fantasias de todos nós que já sonhamos viver na Paris dos anos 1920. De quebra, é um passeio magnífico pela cidade dos corações de quem já esteve lá e de quem ainda espera ir. A história fica melhor se o espectador souber quem são os personagens com quem Gil, o protagonista, se encontra - Hemingway, Scott e Zelda, os surrealistas, Picasso, Matisse, Gertrude Stein, Cole Porter... Este protagonista é, claro, o alter-ego de Wood Allen que, finalmente, encontrou em Owen Wilson o ator certo para o seu papel".
Transcrevo o texto de Cora Rónai, no Globo, de 23/06, sobre o filme (não consegui colá-lo aqui):
"Wood Allen, felizmente, não aderiu à onda, "Meia-noite em Paris", filmado em magnífico 2D, é uma espécie de "Rosa púrpura do Cairo" ao contrário, a realização das fantasias de todos nós que já sonhamos viver na Paris dos anos 1920. De quebra, é um passeio magnífico pela cidade dos corações de quem já esteve lá e de quem ainda espera ir. A história fica melhor se o espectador souber quem são os personagens com quem Gil, o protagonista, se encontra - Hemingway, Scott e Zelda, os surrealistas, Picasso, Matisse, Gertrude Stein, Cole Porter... Este protagonista é, claro, o alter-ego de Wood Allen que, finalmente, encontrou em Owen Wilson o ator certo para o seu papel".
domingo, 26 de junho de 2011
Camus para reflexão
«Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de jogos; é preciso primeiro responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para ser estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se a importância dessa reposta, porque ela vai anteceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir mais fundo até torná-las claras para o espírito. Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranqüilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente»
quinta-feira, 23 de junho de 2011
A importância da literatura, por Mário Vargas Llosa
A importância da literatura
por Mario Vargas Llosa (foto)
Em feiras de livros ou mesmo livrarias, freqüentemente alguém se aproxima pedindo-me autógrafo. "É para minha mulher, filha ou mãe", explica. "Ela adora ler!" De pronto pergunto: "E o senhor? Não gosta de ler?" E a resposta é quase sempre a mesma: "Gosto, mas sou muito ocupado."
Já ouvi essa explicação dezenas de vezes. Esse homem - e milhares outros como ele - tem tantos afazeres importantes, tantas obrigações e responsabilidades, que não pode perder seu precioso tempo mergulhado num romance.
Segundo esse raciocínio, a literatura seria uma atividade dispensável, uma diversão que somente pessoas com muito tempo livre poderiam se permitir.
Gostaria de apresentar alguns argumentos contra a idéia da literatura como passatempo e em prol de considerá-la, além de uma das ocupações mais estimulantes e enriquecedoras do espírito humano, uma atividade insubstituível para a formação de cidadãos na sociedade moderna e democrática. Por essa razão, ela deveria ser semeada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas educacionais.
Vivemos numa era de especialização em virtude do extraordinário desenvolvimento da ciência e da tecnologia, e da conseqüente fragmentação do conhecimento em incontáveis avenidas e compartimentos.
A especialização traz benefícios. Possibilita pesquisa e experimentos, e é a força motriz do progresso. Mas também destrói os denominadores comuns culturais que permitem a coexistência, a comunicação e a solidariedade. E leva à separação dos seres humanos em guetos culturais de especialistas, confinados - pela linguagem, por códigos de conduta e pelo conhecimento particularizado - a uma especificidade contra a qual um antigo provérbio já nos advertia: não se concentre tanto na folha, a ponto de esquecer que ela é parte da árvore e esta, da floresta.
Em grande medida, a noção da existência dessa floresta depende do senso de conjunto que une a sociedade e não a deixa se desintegrar numa centena de especificidades. A ciência e a tecnologia, portanto, já não podem desempenhar esse papel unificador da cultura.
A literatura, por sua vez, foi e, enquanto existir, continuará sendo um denominador comum da experiência humana. Aqueles de nós que leram Cervantes, Shakespeare, Dante ou Tolstoi entendem uns aos outros e se sentem indivíduos da mesma espécie porque, nas obras desses escritores, aprenderam o que partilhamos com seres humanos, independentemente de posição social, geografia, situação financeira e período histórico.
Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais. Nada nos ensina melhor do que os bons romances a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do legado humano e a estimá-las como manifestação da multifacetada criatividade humana.
Ler boa literatura é ainda aprender o que e como somos - em toda a nossa humanidade, com nossas ações, nossos sonhos e nossos fantasmas -, tanto no espaço público como na privacidade de nossa consciência. Esse conhecimento se encontra apenas na literatura. Nem mesmo os outros ramos das ciências humanas - a filosofia, a história ou as artes - conseguiram preservar essa visão integradora e um discurso acessível ao leigo, pois também eles sucumbiram ao domínio da especialização.
O elo fraternal que a literatura estabelece entre os seres humanos transcende todas as barreiras temporais. A sensação de ser parte da experiência coletiva através do tempo e do espaço é a maior conquista da cultura, e nada contribui mais para renová-la a cada geração do que a literatura.
O que a literatura deu à humanidade, então?
Um de seus primeiros efeitos benéficos ocorre no plano da linguagem. Uma sociedade sem literatura escrita se exprime com menos precisão, riqueza de nuances, clareza, correção e profundidade do que a que cultivou os textos literários.
Uma humanidade sem romances seria muito parecida com uma comunidade de gagos e afásicos. Isso também vale para o indivíduo. As pessoas que nunca lê, lê pouco ou lê apenas lixo pode falar muito, mas vai sem dizer pouco, porque dispõe de um repertório mínimo de palavras para se expressar.
Não se trata de uma limitação somente verbal, mas também intelectual, uma indigência de idéias e conhecimento, porque os conceitos pelos quais assimilamos a realidade não são dissociados das palavras que nossa consciência usa para reconhecê-los e defini-los.
Nenhuma disciplina substitui a literatura na formação da linguagem. O conhecimento transmitido por manuais técnicos e tratados científicos é fundamental, mas eles não nos ensinam a nos exprimir corretamente. Ao contrário, com freqüência são mal escritos porque os autores, às vezes expoentes indiscutíveis em sua profissão, não sabem transmitir seus tesouros conceituais.
Outro motivo para se conferir à literatura um lugar de destaque na vida das nações é que, sem ela, a mente crítica - verdadeiro motor das mudanças históricas e melhor escudo da liberdade - sofreria uma perda irreparável. Porque toda boa literatura é um questionamento radical do mundo em que vivemos. Qualquer texto literário de valor transpira uma atitude rebelde, insubmissa, provocadora e inconformista.
A literatura apazigua essa insatisfação existencial apenas por um momento, mas nesse instante milagroso, nessa suspensão temporária da vida, somos diferentes: mais ricos, mais felizes, mais intensos, mais complexos e mais lúcidos. A literatura nos permite viver num mundo onde as regras inflexíveis da vida real podem ser quebradas, onde nos libertamos do cárcere do tempo e do espaço, onde podemos cometer excessos sem castigo e desfrutar de uma soberania sem limites. Como não nos sentirmos enganados depois de ler "Guerra e Paz" ou "Em Busca do Tempo Perdido" e voltar a este mundo de detalhes insignificantes, obstáculos, limitações, barreiras e proibições que nos espreitam de todo canto e em cada esquina corrompem nossas ilusões?
Quer dizer, a vida imaginada dos romances é melhor: mais bonita e diversa, mais compreensível e perfeita. Talvez seja esta a maior contribuição da literatura ao progresso: lembrar que o mundo é malfeito, e que poderia ser melhor, mais parecido com o que a imaginação é capaz de criar.
A sociedade livre e democrática requer cidadãos responsáveis, críticos, independentes, difíceis de manipular, em constante efervescência espiritual e cientes da necessidade de examinar continuamente o mundo em que vivemos, para tentar aproximá-lo do mundo em que gostaríamos de viver.
Sem insatisfação e rebeldia, ainda viveríamos em estado primitivo, a história teria parado, o indivíduo não teria nascido, a ciência não teria alçado vôo, os direitos humanos não teriam sido reconhecidos e a liberdade não existiria. Tudo isso nasce dos atos de desafio a uma vida que se mostra insuficiente ou intolerável. Para esse espírito que despreza a vida como ela é - e, com a insensatez de Dom Quixote, tenta tornar o sonho realidade -, a literatura serve de magnífica espora. A verdade é que o desenvolvimento da mídia audiovisual - que ao mesmo tempo que revoluciona as comunicações monopoliza cada vez mais o tempo que dedicamos ao lazer, relegando a leitura a segundo plano - permite-nos imaginar para um futuro próximo uma sociedade moderníssima, repleta de computadores, telas e microfones, mas sem livros.
Temo que esse mundo cibernético seja profundamente incivilizado, sem espírito, apático - uma resignada humanidade de robôs.
Evidentemente , é muito improvável que essa terrível perspectiva venha algum dia a se concretizar. Não existe um destino que decida por nós o que vamos ser. Depende de nosso discernimento e de nossa vontade que essa utopia macabra se realize ou se apague.
Se queremos evitar o desaparecimento dos romances - ou sua restrição ao sótão dos objetos inúteis - e com isso o desaparecimento da própria fonte que estimula a imaginação e a insatisfação, que refina nossa sensibilidade e nos ensina a falar com eloqüência e precisão, que nos torna livres e nos garante uma vida mais rica e intensa, então devemos agir. Precisamos ler bons livros e incitar à leitura os que vêm depois de nós.
(*) Este texto ao lado é da março de 2003 da revista Seleções Reader's Digest (http://www
sexta-feira, 10 de junho de 2011
Não se mate, C.Drumond de Andrade
Não se mate
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.
Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.
O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê,
pra quê.
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá.
*********
de Espelho Mágico, M.Quintana
quinta-feira, 2 de junho de 2011
Sobre a flor dama -da-noite, de Clarice Lispector, in Água Viva
Dama-da-noite tem perfume de lua cheia.É fantasmagórica e um pouco assustadora e é para quem ama o perigo.Só sai de noite com seu cheiro tonteador.Dama-da-noite é silente.
E também da esquina deserta e em trevas e dos jardins de casas de luzes apagadas e janelas fechadas.
É perigosíssima: é um assobio no escuro, o que ninguém aguenta.Mas eu aguento porque amo o perigo.
O PRESENTE TEXTO É UMA HOMENAGEM A ESTA PESSOA ESPECIAL: ÂNGELA ELLIAS, DO CLIC, E QUE DESCOBRI TER ATENÇÃO A UMA FLOR AMADA TAMBÉM POR MIM.
quarta-feira, 1 de junho de 2011
Horta, Rubem Alves
Uma horta é uma festa para os cinco sentidos. Boa de cheirar, ver, ouvir, tocar e comer. É coisa mágica, erótica, o cio da terra provocando o cio dos homens.
Cheguei de viagem e antes de entrar em casa fui ver a minha horta. O mato crescera muito. Mas minhas plantas também. O verde anunciava uma exuberância de vida, nascida do calor e das chuvas que se alternavam sem parar. O meu coração se alegrou. Pode parecer estranho, mas é pelo coração que me ligo à minha horta. Daí a alegria... Estranho porque para muitos a relação acontece através da boca e do estômago. Horta como o lugar onde crescem as coisas que, no momento próprio, viram saladas, refogados, sopas e suflês. Também isso. Mas não só. Gosto dela, mesmo que não tenha nada para colher. Ou melhor: há sempre o que colher, só que não pra comer.
Semente, sêmen
Horta se parece com filho. Vai acontecendo aos poucos, a gente vai se alegrando a cada momento, cada momento é hora de colheita. Tanto o filho quanto a horta nascem de semeaduras. Semente, sêmen: a coisinha é colocada dentro, seja da mãe/mulher, seja da mãe/terra, e a gente fica esperando, pra ver se o milagre ocorreu, se a vida aconteceu. E quando germina - seja criança, seja planta - é uma sensaçao de euforia, de fertilidade, de vitalidade. Tenho vida dentro de mim! E a gente se sente um semideus, pelo poder de gerar, pela capacidade de despertar o cio da terra.
Não é à toa que povos de tradições milenares ligavam a fertilidade da terra à fertilidade dos homens e das mulheres. Faziam suas celebrações religiosas em meio aos campos recém-semeados, para que o cio humano provocasse a inveja da terra, e ela também se excitasse para o recebimento das sementes. O cio dos homens provocando o cio da terra. Mas o inverso também é verdadeiro: o cio da terra pode provocar o cio dos homens...
Cio é desejo intenso, não dá descanso, invade tudo e provoca sonhos, semente que não se esquece do seu destino, vida querendo fertilizar e ser fertilizada, para crescer. Pois a horta é assim também. Não é coisa só para boca. Se apossa do corpo inteiro, entra pelo nariz, pelos olhos, pelos ouvidos, pela pele, toma conta da imaginação, invoca memórias...
Cheiração beatífica
Horta é coisa boa de se cheirar. Estranho o desprezo com que tratamos o nariz. Os teólogos de outros tempos falavam da “visão beatífica de Deus”. Mas nunca li, em nenhum deles, coisa alguma sobre “a cheiração beatífica de Deus”. Como se fosse indigno que Deus tivesse cheiros, que ele entrasse pelos nossos narizes adentro, por escuros canais até as origens mais primitivas do nosso corpo.
Pois, se eu pudesse, faria uma teologia inspirada na horta, e o meu Deus teria o cheiro das folhas do tomateiro depois de regadas, e também da hortelã, do manjericão, do orégano, do coentro. Essa coisa indefinível, invisível, que entra fundo na nossa alma e daí se irradia para o corpo inteiro como uma onda embriagante, o cheiro é a aura erótica do objeto, sua presença dentro de nós, emanação mágica por meio da qual nós o possuímos. Quem cheira fundo - e para isso até fecha os olhos, porque o cheiro vai mais dentro que os olhos - está dizendo o quanto ama...
E fico pensando nessa coisa curiosa: que a horta só seja percebida como produtora de coisas boas para comer. Isso só pode ser devido a uma degeneração do nosso corpo, de sua imensa riqueza erótica, à monotonia canibalesca que só reconhece o comer como forma de apropriação do objeto. Os cheiros moram na horta, e quem não se dá o trabalho de cultivá-la não pode ter a alegria de reconhecê-los. Há pessoas que se reúnem para ouvir música; outras pelo puro prazer do paladar. Mas ainda não se convidam pessoas para concertos e banquetes de perfumes. O mais próximo seria, talvez, convidá-las para passear pela nossa horta, e ali nos deliciar com a sua perplexidade na medida em que lhes oferecemos folhinhas para cheirar e lhes perguntamos: “Sabe o que é isto? Veja como é gostoso...“
Olhares para a vida
Horta é coisa boa de se ver.
Dizem os poemas sagrados que Deus Todo-Poderoso, depois de criar todas as coisas, parou, deixou cair os braços e foi invadido pelo puro deleite de ver a beleza de tudo o que existia. Ver é experiência estética, não serve para coisa alguma. Diferente do comer. Comer é útil. A mãe insiste com a criança: “Coma o espinafre, meu bem, ele faz você ficar forte.” O “ficar forte” justifica suportar o gosto ruim: é a utilidade da coisa.
Mas nada disso se pode dizer do ato de ver. Ver os espinafres, as couves, as alfaces, os tomates não é útil para coisa alguma, não serve para nada. Mas faz bem à alma. “Não só de pão viverá o homem”, diz o texto sagrado. Vivemos também das coisas belas.
Há o belo das cores: o vermelho dos pimentões, das pimentinhas ardidas, dos tomatinhos... Ah! Os tomatinhos... Falo daqueles pequenos, minúsculos, que não se encontram em lugar civilizado, não se vendem em feiras (quanto poderiam valer?). Mas eu os descobri numa velha fazenda, e não resisti à tentação de trazer uma mudas. Sua maior utilidade, além de serem redondinhos e vermelhos, é serem planta da minha infância. De modo que, na minha horta, eu tenho um arbusto mágico, que me leva através do tempo, e, quando eu os apanho e os como, sinto renascer dentro do meu corpo o corpo de um menino que mora nele.
Há o verde também dos pimentões, que se comprazem em brincar com as cores das cebolinhas, das alfaces, das couves, dos espinafres, da salsa. O amarelo das cenouras, e de novo dos pimentões (vocês já viram pimentões amarelos? São raros, brilhantes, maravilhosos. Eu até tive uma árvore de Natal enfeitada só com pimentões verdes, verrnelhos e amarelos). O roxo das beterrabas, dos rabanetes, das berinjelas. O branco dos nabos.
E ao ver essa abundância de cores imagino que a natureza é brincalhona, ela se compraz na exuberância e no excesso. E enquanto meus olhos vão andando pela variedade das cores, coisas vão acontecendo dentro de mim. Porque isso significa que elas existem dentro de mim. Se eu fosse cego para as cores, não me aperceberia de nenhuma diferença. O objeto que vejo revela um objeto que existe dentro de mim. Os olhos só vêem fora aquilo que já existe dentro como desejo. Tenho também um pé de ora-pro-nóbis, coisa de gente pobre, em Minas Gerais. Só vi referências a ele em dois lugares. Primeiro, no livro Fogão de lenha, de Maria Stella Libânio Christo, como uma receita culinária no meio de uma celebração de 300 anos de cozinha mineira, que vale pelo puro deleite de ler. E depois num poema de Adélia Prado - ela sabe muito bem do encanto das hortas. Ora-pro-nóbis, nome que parece responso litúrgico, é um arbusto que se planta uma vez na vida. Ele é tão amigo que fica lá, soltando folhas sem parar.
Pois é: uma festa. Cores e formas, tudo diferente, natureza brincalhona, artista, imaginação sem fim. Morangas gomosas; aboborões e abobrinhas; quiabos escorregadios; berinjelas roxo-pretas, engraçadas em tudo, até no nome; mandiocas carás de debaixo da terra; carás do ar, pendentes; inhames; chuchus; nabos redondos; nabos fálicos; alcachofras; folhas de todos os desenhos; alfaces; almeirão; acelgas; brócolis; couve; bertalha; repolhos brancos; repolhos roxos; agrião; espinafre. Diante desse esbanjamento de inventividade o jeito é o espanto, o riso e a gratidão de que este seja um mundo onde o enfado é impossível.
(Continua outroo dia).
Amos cores , os aromas de plantas. Coentro é uma delícia...
terça-feira, 31 de maio de 2011
Chama e fumo, Manuel Bandeira
CHAMA E FUMO
Amor - chama, e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...
Gozo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor - chama, e, depois, fumaça...
Tanto ele queima! e, por desgraça,
Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...
Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor - chama, e, depois, fumaça...
A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...
Antes, todo ele é gosto e graça.
Amor, fogueira linda a arder!
Amor - chama, e, depois, fumaça...
Porquanto, mal se satisfaça
(Como te poderei dizer?...),
O fumo vem, a chama passa...
A chama queima. O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas... tem de ser...
Amor?... - chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...
Teresópolis, 1911
sábado, 21 de maio de 2011
O Canto do Vento _ de Elenir Teixeira
Quando minha neta tinha uns três anos ou quatro anos, passeávamos de mãos dadas e ela falava baixinho sem parar. Perguntei-lhe : "Querida, você está conversando com quem?" Ela respondeu:" Com o vento,vovó. Ele está falando no meu ouvidinho. Só pra mim."
Quando meu neto, quatorze anos mais novo que a irmã, tinha uns três anos ou quatro anos, pegou minha mão, levou-me à varanda, no 11º andar, e , apontando com seus dedinhos, através das grades, disse: Olha , vovó, as folhinhas verdes dançando!Elas estão escutando música?" Eu respondi: Estão, querido, o vento canta e elas dançam."
Minha bisnetinha tem um ano. Estarei a seu lado quando ouvir cantar o vento?
*************************************************************************************
Obrigda, meu anjo, pela contribuição. E respondo: O anjo de guarda de sua bisnetinha vai dar-lhe esta e muitas outras alegrias, pois a menina tem uma avó de coração sensível e jovem. Sua beleza se mostra em seu sorriso nas fotos.
quarta-feira, 18 de maio de 2011
Um soneto de Camilo Castelo Branco
Comédia humana
Literatos! Chorai-me, que eu sou digno
Da vossa gemebunda e velha táctica!
Se acaso tendes crimes em gramática,
Farei que vos perdoe o Deus benigno.
Demais conheço a prosa inflada, enfática,
Com que chorais os mortos; e o maligno
Desafecto aos que vivem… Não me indigno…
Sei o que sois em teoria e em prática.
Quando o avô desta vã literatura
Garret, era levado á sepultura,
Viu-se a imprensa verter prantos sem fim…
Pois seis dos literatos mais magoados,
Saíram, nessa noite embriagados,
Da crapulosa tasca do Penim.
.
Nota: a tasca do Penim era frequentada por artistas e situava-se na Rua do Regedor (junto à Rua da Madalena na Baixa Pombalina).
sexta-feira, 13 de maio de 2011
Entrevista a Saramago_ Todos os Nomes.
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In PÚBLICO de 25 de Outubro de 1997
"O presente é uma linha ténue"
Por Carlos Câmara Leme
"Todos os Nomes", o último livro de José Saramago, é um ensaio sobre a existência, com contornos policiais. Um ensaio pessimista. "Nada no mundo tem sentido", diz a personagem central do romance. A única que tem nome: José.
O novo romance de José Saramago mistura muitas coisas: uma história, um ensaio - de foro filosófico - e algo de novo na sua obra. Saramago está cada vez mais descrente do futuro da humanidade, e do homem. Ou seja, mais pessimista. Os lugares centrais do livro passam por uma Conservatória Geral e por um cemitério, onde todos nós, mortos e vivos, se confundem. Resta-nos viver o presente... É pouco. Se calhar é a única coisa que nos resta. A obra é lançada pela Caminho nos próximos dias e será apresentada a 3 de Novembro, em Lisboa, por Eduardo Lourenço. O PÚBLICO já leu o livro e entrevistou o autor de "O Ano da Morte de Ricardo Reis".
O que é "Todos os Nomes"? Um romance com muitos traços de um policial? Mais um ensaio sobre a existência? Sobre a procura da identidade?
Para haver romance policial são precisos, pelo menos, um criminoso e um polícia. Nada disso existe em "Todos os Nomes". Mas é verdade que o livro descreve uma procura, uma busca, que há nele uma investigação. A grande e decisiva diferença está no facto de que a pessoa procurada não sabe que a procuram e a pessoa que procura não tem a certeza de querer encontrar o objecto da sua busca. Que este romance possa ser entendido como um ensaio sobre a existência - talvez. Julgo que todos os livros o são, que escrevemos para saber o que significa "viver", e não já para tentar encontrar resposta às famosas perguntas: quem somos? Donde vimos? Para onde vamos?
Que o livro possa ser visto como uma indagação sobre a identidade, sim, mas não sobre a identidade própria. O que aqui se procura é o "outro".
O Sr. José - a personagem central do livro - é uma daquelas pessoas que levam a vida a coleccionar coisas, diz-se no início do livro - "talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo". O Sr. José não se identifica desta maneira com o romancista José Saramago enquanto criador de mundos aos quais procura imprimir um sentido?
Não sou o Sr. José, embora lhe tenha dado o meu nome. E não me reconheço em nenhum dos seus comportamentos e características. Não temos o mesmo "modo de ser". Salvo essa ideia de que talvez seja possível pôr alguma ordem no que a não tem, ou, por outras palavras, resignar-se ao caos desde que seja possível traçar nele ao menos uma linha que una dois pontos. O que faço como romancista é tentar atar uns quantos fios soltos, deixar atrás de mim um pouco de sentido. Mesmo que não seja mais que o tão caluniado sentido comum...
"Não há nada que mais canse uma pessoa", diz o narrador, "que ter que lutar com o próprio espírito, com uma abstracção." Esse também é o trabalho do escritor? Como é que surgiu esta ideia de baralhar a vida dos mortos com a vida dos vivos? É a procura da natureza da fronteira que separa a vida da morte? Afinal, como se discute no último capítulo do livro, o que é mais sagrado: a vida ou a morte?
Todo o romance precisa de uma "história", mas um romance que não se tenha proposto mais que contar "essa história" interessa-me pouco. A explicação disto, provavelmente, encontra-se numa declaração que algumas vezes tenho feito, a de ser em ensaísta falhado que escreve romances porque não teve quem lhe ensinasse a escrever ensaios... Precisei sempre, para trabalhar, de uma ideia forte, ou de uma abstracção, se se quiser chamar-lhe assim. Mas as ideias, sejam elas fortes ou fracas, só da realidade é que podem nascer, os dados da imaginação são também dados de realidade. "Todos os Nomes" não existiria se eu não tivesse tido que procurar, investigar, como fui relatando ao longo dos "Cadernos de Lanzarote - IV", as circunstâncias do falecimento do meu irmão Francisco, em 1924. Nada dessa busca passou para o romance, mas o livro alimenta-se da minha própria vivência de Sr. José durante os meses que levei a procurar um garotinho que morreu com quatro anos no hospital de Lisboa.
Quanto ao que é mais sagrado, se a morte, se a vida, respondo que a vida. Mas nem toda a gente estará de acordo: a prova é que dar um pontapé a um vivo não suscitará qualquer advertência sobre o sagrado da vida, ao passo que tê-lo dado a um morto provocaria logo o protesto: "Tenha vergonha! A morte é sagrada!..."
Essa questão coloca-nos, de novo, perante a questão da identidade. Todos os nomes podem ser um só? O do Sr. José, perseguindo o destino de uma mulher e o seu próprio, não se confunde connosco? Com todos os josés do mundo?
Remeto para o "Ensaio sobre a Cegueira". Em certa altura a rapariga dos óculos escuros diz: "Há dentro de nós uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos." Comentando esta frase, escrevi há tempo: "Talvez o desejo mais profundo do ser humano seja poder dar-se a si mesmo o nome que lhe falta." Portanto todos somos uma espécie de senhores josés a quem anda a faltar o resto do nome.
Na epígrafe do livro lê-se: "Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens." Quem diz o nome não pode dizer a vida? "Em rigor", diz de novo o narrador, "não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós." O acaso tem uma força imensa...
Torno à rapariga dos óculos escuros. A frase dita por ela e a epígrafe deste romance são complementares, encaixam perfeitamente uma na outra. Isto mostra, ao menos, que há alguma coerência nas ideias do autor... Quanto à "vida", não me parece que possa ocupar aqui o lugar do "nome". Quem sou eu? Um "ser humano" a quem deram o nome de "José Saramago". E isso que significa? Que significa ser-se "ser humano"? Que significa ser-se "José Saramago"? São apenas nomes que "me deram", não são o nome "que tenho". Também damos o nome de "acaso" a algo que nos dicionários se define assim: "Efeito resultante de um grande número de pequenas causas, independentes entre si, e funções de leis ignoradas ou mal conhecidas." Por outras palavras: o acaso não existe...
O ser no tempo
Reunir, como faz o chefe da conservatória, os papéis da vida e da morte não é demasiado borgiano? Não será esse o tema central do romance e a essência da busca do Sr. José?
Nunca nada será demasiado borgiano. Creio que os três escritores que melhor definem este século são Kafka, Pessoa e Borges, o que quer dizer que também nunca nada será "demasiado" pessoano ou kafkiano... O tema central do romance, como disse antes, é a procura do "outro", independentemente de estar vivo ou morto. Por isso o Sr. José continuará a "procurar" a mulher desconhecida, mesmo depois de saber que já não a poderá encontrar. Juntar os papéis dos vivos e dos mortos significa juntar toda a humanidade. Nada mais. Ou tudo isso.
À imagem do que acontece na esmagadora maioria dos seus livros, o problema do tempo, dos tempos, está também presente em "Todos os Nomes". Porquê essa obsessão?
Porque todas as outras obsessões não passam de meros afluentes desse mar.
Qual é o principal objecto da sua ficção: o tempo ou o ser? "O mais importante", lê-se, "era precisamente isso, o que o tempo faz mudar, e não o nome, que nunca varia"...
Não o ser por si só, não o tempo por si só, mas o ser no tempo. Parece uma frase de filósofo, peço perdão pelo atrevimento... Mas às vezes penso que o direito à filosofia deveria ser incluído entre os direitos humanos...
Ao contrário do que acontece com outras personagens femininas que criou - as mulheres fantásticas de "Memorial do Convento", de "Jangada de Pedra" ou de "Ensaio sobre a Cegueira" -, em "Todos os Nomes" não parece ser reconhecida à mulher e ao amor uma força tão excepcional. Porquê? Mas ainda há aqui, veladamente, uma história de amor?
É uma história de amor, ou melhor, uma história que poderia vir a ser de amor. A ansiedade do Sr. José é já uma ansiedade amorosa, embora ele não saiba ao princípio. Quanto à força, a tal força feminina que de facto está patente em outros romances, creio que ela também se encontra em "Todos os Nomes", na senhora do rés-do-chão direito. A diferença é que, desta vez, não se trata duma mulher nova, mas duma mulher de 70 anos. As outras mulheres são, de certo modo, "sobre-humanas", esta é "humana" simplesmente. A força, porém, está lá...
Um dos aspectos mais interessantes da obra é a existência de várias vozes que aqui e ali vão aparecendo. Uma delas chega a ser o tecto que dá conselhos ao Sr. José (como noutras obras eram os misteriosos cães que iam dando uns palpites). Qual é a importância dessas vozes? Até que ponto a sua introdução não é sinal de uma alteração na sua técnica narrativa?
Isso a que chama "vozes" já vem de "Levantado do Chão". São como projecções da consciência, ecos de um dizer ou de um pensar que se tornaram dialécticos ao expressar-se, neste caso ainda mais justificados pelo facto de o Sr. José ser um homem só. "Falar com as paredes" é uma expressão coloquial corrente, portanto o Sr. José não inventou nada quando fez do tecto da sua casa um interlocutor.
Além da conservatória, há um outro espaço fundamental e similar, em "Todos os Nomes": o do Cemitério Geral; espaços onde a vida e a morte se confundem. Porquê essa similitude? O narrador diz que o Cemitério Geral é "um catálogo perfeito, um mostruário (...) um inventário de todos os modos de ver, estar e habitar existentes até hoje", "o próprio coração do tempo". Porquê?
Uma conservatória única e um cemitério único, como são os deste romance, contêm logicamente, por essa mesma unicidade, todos os nomes. Quando cito aquela frase de Croce que diz que "toda a História é História contemporânea", quero dizer, à minha maneira, que tudo o que sucedeu está a suceder, que todos os mortos estão vivos, que não somos nada sem eles. O presente é uma linha ténue que se desloca ininterruptamente para o que chamamos futuro, ou talvez um "eixo" móvel sobre o qual o tempo vai rolando, segundo a segundo. Ou página a página.
Se, como escreve, "contra a morte não se pode fazer nada", por que é que "um Cemitério é como uma espécie de biblioteca onde o lugar dos livros se encontrasse ocupado por pessoas enterradas"?
É certo que, objectivamente, nada podemos contra a morte. Mas a memória, a memória "sobrevivente", faz pairar, sobre a morte, a vida. Muitas vezes se chamou a uma biblioteca não consultada cemitério de livros. É a primeira vez, suponho, que alguém teve a ideia de chamar a um cemitério biblioteca de pessoas. Tudo está em consultar ou não a biblioteca, qualquer que ela seja. A memória, quero dizer.
Por que razão o Sr. José escolhe "a verdade pela mentira", quando troca a tabuleta da mulher desconhecida por uma outra? Na vida, como na morte, tudo é relativo? Não há fio de Ariadne que nos norteie?
Quando o Sr. José troca a tabuleta, ela já tinha sido trocada antes. Talvez a nova troca tenha recolocado a tabuleta no seu lugar, talvez não. De todo o modo ele não o saberá. O importante não é perguntar "Onde estás?", mas sim "Quem foste?".
"Todos os Nomes" é uma busca ontológica? Ou é uma subversão das fronteiras entre verdade e mentira, vida e morte? Nada no mundo tem sentido, como murmura, no final do livro, o Sr. José?
Busca ontológica, sim. Mas sem mais pretensão que chegar aonde alcançasse, nesses domínios, o meu curto braço. Quanto ao sentido que a vida tenha, já não seria pouco que conseguíssemos ser, cada um de nós, o nosso próprio fio de Ariadne...
In PÚBLICO de 25 de Outubro de 1997
"O presente é uma linha ténue"
Por Carlos Câmara Leme
"Todos os Nomes", o último livro de José Saramago, é um ensaio sobre a existência, com contornos policiais. Um ensaio pessimista. "Nada no mundo tem sentido", diz a personagem central do romance. A única que tem nome: José.
O novo romance de José Saramago mistura muitas coisas: uma história, um ensaio - de foro filosófico - e algo de novo na sua obra. Saramago está cada vez mais descrente do futuro da humanidade, e do homem. Ou seja, mais pessimista. Os lugares centrais do livro passam por uma Conservatória Geral e por um cemitério, onde todos nós, mortos e vivos, se confundem. Resta-nos viver o presente... É pouco. Se calhar é a única coisa que nos resta. A obra é lançada pela Caminho nos próximos dias e será apresentada a 3 de Novembro, em Lisboa, por Eduardo Lourenço. O PÚBLICO já leu o livro e entrevistou o autor de "O Ano da Morte de Ricardo Reis".
O que é "Todos os Nomes"? Um romance com muitos traços de um policial? Mais um ensaio sobre a existência? Sobre a procura da identidade?
Para haver romance policial são precisos, pelo menos, um criminoso e um polícia. Nada disso existe em "Todos os Nomes". Mas é verdade que o livro descreve uma procura, uma busca, que há nele uma investigação. A grande e decisiva diferença está no facto de que a pessoa procurada não sabe que a procuram e a pessoa que procura não tem a certeza de querer encontrar o objecto da sua busca. Que este romance possa ser entendido como um ensaio sobre a existência - talvez. Julgo que todos os livros o são, que escrevemos para saber o que significa "viver", e não já para tentar encontrar resposta às famosas perguntas: quem somos? Donde vimos? Para onde vamos?
Que o livro possa ser visto como uma indagação sobre a identidade, sim, mas não sobre a identidade própria. O que aqui se procura é o "outro".
O Sr. José - a personagem central do livro - é uma daquelas pessoas que levam a vida a coleccionar coisas, diz-se no início do livro - "talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo". O Sr. José não se identifica desta maneira com o romancista José Saramago enquanto criador de mundos aos quais procura imprimir um sentido?
Não sou o Sr. José, embora lhe tenha dado o meu nome. E não me reconheço em nenhum dos seus comportamentos e características. Não temos o mesmo "modo de ser". Salvo essa ideia de que talvez seja possível pôr alguma ordem no que a não tem, ou, por outras palavras, resignar-se ao caos desde que seja possível traçar nele ao menos uma linha que una dois pontos. O que faço como romancista é tentar atar uns quantos fios soltos, deixar atrás de mim um pouco de sentido. Mesmo que não seja mais que o tão caluniado sentido comum...
"Não há nada que mais canse uma pessoa", diz o narrador, "que ter que lutar com o próprio espírito, com uma abstracção." Esse também é o trabalho do escritor? Como é que surgiu esta ideia de baralhar a vida dos mortos com a vida dos vivos? É a procura da natureza da fronteira que separa a vida da morte? Afinal, como se discute no último capítulo do livro, o que é mais sagrado: a vida ou a morte?
Todo o romance precisa de uma "história", mas um romance que não se tenha proposto mais que contar "essa história" interessa-me pouco. A explicação disto, provavelmente, encontra-se numa declaração que algumas vezes tenho feito, a de ser em ensaísta falhado que escreve romances porque não teve quem lhe ensinasse a escrever ensaios... Precisei sempre, para trabalhar, de uma ideia forte, ou de uma abstracção, se se quiser chamar-lhe assim. Mas as ideias, sejam elas fortes ou fracas, só da realidade é que podem nascer, os dados da imaginação são também dados de realidade. "Todos os Nomes" não existiria se eu não tivesse tido que procurar, investigar, como fui relatando ao longo dos "Cadernos de Lanzarote - IV", as circunstâncias do falecimento do meu irmão Francisco, em 1924. Nada dessa busca passou para o romance, mas o livro alimenta-se da minha própria vivência de Sr. José durante os meses que levei a procurar um garotinho que morreu com quatro anos no hospital de Lisboa.
Quanto ao que é mais sagrado, se a morte, se a vida, respondo que a vida. Mas nem toda a gente estará de acordo: a prova é que dar um pontapé a um vivo não suscitará qualquer advertência sobre o sagrado da vida, ao passo que tê-lo dado a um morto provocaria logo o protesto: "Tenha vergonha! A morte é sagrada!..."
Essa questão coloca-nos, de novo, perante a questão da identidade. Todos os nomes podem ser um só? O do Sr. José, perseguindo o destino de uma mulher e o seu próprio, não se confunde connosco? Com todos os josés do mundo?
Remeto para o "Ensaio sobre a Cegueira". Em certa altura a rapariga dos óculos escuros diz: "Há dentro de nós uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos." Comentando esta frase, escrevi há tempo: "Talvez o desejo mais profundo do ser humano seja poder dar-se a si mesmo o nome que lhe falta." Portanto todos somos uma espécie de senhores josés a quem anda a faltar o resto do nome.
Na epígrafe do livro lê-se: "Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens." Quem diz o nome não pode dizer a vida? "Em rigor", diz de novo o narrador, "não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós." O acaso tem uma força imensa...
Torno à rapariga dos óculos escuros. A frase dita por ela e a epígrafe deste romance são complementares, encaixam perfeitamente uma na outra. Isto mostra, ao menos, que há alguma coerência nas ideias do autor... Quanto à "vida", não me parece que possa ocupar aqui o lugar do "nome". Quem sou eu? Um "ser humano" a quem deram o nome de "José Saramago". E isso que significa? Que significa ser-se "ser humano"? Que significa ser-se "José Saramago"? São apenas nomes que "me deram", não são o nome "que tenho". Também damos o nome de "acaso" a algo que nos dicionários se define assim: "Efeito resultante de um grande número de pequenas causas, independentes entre si, e funções de leis ignoradas ou mal conhecidas." Por outras palavras: o acaso não existe...
O ser no tempo
Reunir, como faz o chefe da conservatória, os papéis da vida e da morte não é demasiado borgiano? Não será esse o tema central do romance e a essência da busca do Sr. José?
Nunca nada será demasiado borgiano. Creio que os três escritores que melhor definem este século são Kafka, Pessoa e Borges, o que quer dizer que também nunca nada será "demasiado" pessoano ou kafkiano... O tema central do romance, como disse antes, é a procura do "outro", independentemente de estar vivo ou morto. Por isso o Sr. José continuará a "procurar" a mulher desconhecida, mesmo depois de saber que já não a poderá encontrar. Juntar os papéis dos vivos e dos mortos significa juntar toda a humanidade. Nada mais. Ou tudo isso.
À imagem do que acontece na esmagadora maioria dos seus livros, o problema do tempo, dos tempos, está também presente em "Todos os Nomes". Porquê essa obsessão?
Porque todas as outras obsessões não passam de meros afluentes desse mar.
Qual é o principal objecto da sua ficção: o tempo ou o ser? "O mais importante", lê-se, "era precisamente isso, o que o tempo faz mudar, e não o nome, que nunca varia"...
Não o ser por si só, não o tempo por si só, mas o ser no tempo. Parece uma frase de filósofo, peço perdão pelo atrevimento... Mas às vezes penso que o direito à filosofia deveria ser incluído entre os direitos humanos...
Ao contrário do que acontece com outras personagens femininas que criou - as mulheres fantásticas de "Memorial do Convento", de "Jangada de Pedra" ou de "Ensaio sobre a Cegueira" -, em "Todos os Nomes" não parece ser reconhecida à mulher e ao amor uma força tão excepcional. Porquê? Mas ainda há aqui, veladamente, uma história de amor?
É uma história de amor, ou melhor, uma história que poderia vir a ser de amor. A ansiedade do Sr. José é já uma ansiedade amorosa, embora ele não saiba ao princípio. Quanto à força, a tal força feminina que de facto está patente em outros romances, creio que ela também se encontra em "Todos os Nomes", na senhora do rés-do-chão direito. A diferença é que, desta vez, não se trata duma mulher nova, mas duma mulher de 70 anos. As outras mulheres são, de certo modo, "sobre-humanas", esta é "humana" simplesmente. A força, porém, está lá...
Um dos aspectos mais interessantes da obra é a existência de várias vozes que aqui e ali vão aparecendo. Uma delas chega a ser o tecto que dá conselhos ao Sr. José (como noutras obras eram os misteriosos cães que iam dando uns palpites). Qual é a importância dessas vozes? Até que ponto a sua introdução não é sinal de uma alteração na sua técnica narrativa?
Isso a que chama "vozes" já vem de "Levantado do Chão". São como projecções da consciência, ecos de um dizer ou de um pensar que se tornaram dialécticos ao expressar-se, neste caso ainda mais justificados pelo facto de o Sr. José ser um homem só. "Falar com as paredes" é uma expressão coloquial corrente, portanto o Sr. José não inventou nada quando fez do tecto da sua casa um interlocutor.
Além da conservatória, há um outro espaço fundamental e similar, em "Todos os Nomes": o do Cemitério Geral; espaços onde a vida e a morte se confundem. Porquê essa similitude? O narrador diz que o Cemitério Geral é "um catálogo perfeito, um mostruário (...) um inventário de todos os modos de ver, estar e habitar existentes até hoje", "o próprio coração do tempo". Porquê?
Uma conservatória única e um cemitério único, como são os deste romance, contêm logicamente, por essa mesma unicidade, todos os nomes. Quando cito aquela frase de Croce que diz que "toda a História é História contemporânea", quero dizer, à minha maneira, que tudo o que sucedeu está a suceder, que todos os mortos estão vivos, que não somos nada sem eles. O presente é uma linha ténue que se desloca ininterruptamente para o que chamamos futuro, ou talvez um "eixo" móvel sobre o qual o tempo vai rolando, segundo a segundo. Ou página a página.
Se, como escreve, "contra a morte não se pode fazer nada", por que é que "um Cemitério é como uma espécie de biblioteca onde o lugar dos livros se encontrasse ocupado por pessoas enterradas"?
É certo que, objectivamente, nada podemos contra a morte. Mas a memória, a memória "sobrevivente", faz pairar, sobre a morte, a vida. Muitas vezes se chamou a uma biblioteca não consultada cemitério de livros. É a primeira vez, suponho, que alguém teve a ideia de chamar a um cemitério biblioteca de pessoas. Tudo está em consultar ou não a biblioteca, qualquer que ela seja. A memória, quero dizer.
Por que razão o Sr. José escolhe "a verdade pela mentira", quando troca a tabuleta da mulher desconhecida por uma outra? Na vida, como na morte, tudo é relativo? Não há fio de Ariadne que nos norteie?
Quando o Sr. José troca a tabuleta, ela já tinha sido trocada antes. Talvez a nova troca tenha recolocado a tabuleta no seu lugar, talvez não. De todo o modo ele não o saberá. O importante não é perguntar "Onde estás?", mas sim "Quem foste?".
"Todos os Nomes" é uma busca ontológica? Ou é uma subversão das fronteiras entre verdade e mentira, vida e morte? Nada no mundo tem sentido, como murmura, no final do livro, o Sr. José?
Busca ontológica, sim. Mas sem mais pretensão que chegar aonde alcançasse, nesses domínios, o meu curto braço. Quanto ao sentido que a vida tenha, já não seria pouco que conseguíssemos ser, cada um de nós, o nosso próprio fio de Ariadne...
terça-feira, 10 de maio de 2011
Um carinho de amiga
SE AS COISAS FOSSEM MÃE
Sylvia Orthof
Se a lua fosse mãe, seria mãe das estrelas.
O céu seria sua casa, casa das estrelas belas.
Se a sereia fosse mãe, seria mãe dos peixinhos.
O mar seria um jardim e os barcos seus carrinhos.
Se a casa fosse mãe, seria a mãe das janelas.
Conversaria com a lua sobre as crianças estrelas
Falaria de receitas, pastéis de vento, quindins.
Emprestaria a cozinha pra lua fazer pudins !!!!
Se a terra fosse mãe, seria a mãe das sementes.
Pois mãe é tudo que abraça, acha graça e ama a gente.
Se uma fada fosse mãe, seria a mãe da alegria.
Toda mãe é um pouco fada...
Nossa mãe fada seria.
Se a bruxa fosse mãe, seria uma mãe gozada;
Seria a mãe das vassouras, da família vassourada.
Se a chaleira fosse mãe, seria a mãe da água fervida,
Faria chá e remédio para as doenças da vida.
Se a mesa fosse mãe, as filhas, sendo cadeiras,
Sentariam comportadas, teriam boas maneiras.
Cada mãe é diferente. Mãe verdadeira ou postiça,
Mãe vovó ou mãe titia,
Toda Mãe é como eu disse!
Dona Mamãe ralha e beija, erra, acerta, arruma a mesa,
Cozinha, escreve, trabalha fora,
Ri, esquece, lembra e chora,
Traz remédio e sobremesa...
Tem até pai que é “tipo-mãe”...
Esse, então, é uma beleza!
sábado, 7 de maio de 2011
Eu sou trezentos, M.de Andrade
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo
quarta-feira, 4 de maio de 2011
Poema Elegía Pura de Eduardo Carranza
Aún me dura la melancolía.
Allá por el sinfín cantaba un gallo
agrandando el silencio perla y malva
en que el lucero azul se disolvía.
Olía a cielo, a ella, a poesía.
Sin volver a mirar me fui a caballo.
Maduraban las frutas y sus frutas.
A ella y a jardín secreto, olía.
Me fui, me fui como por un romance
donde fuera el doncel que nunca vuelve…
la casa se quedó con su ventana,
hundida entre la ausencia, al pie del alba.
Flotó su mano y yo me fui a caballo.
Aún me dura la melancolía.
sexta-feira, 29 de abril de 2011
Um belo texto sobre sentido e significado de José Saramago
"O diálogo fora difícil, com alçapões e portas falsas surgindo a cada passo, o mais pequeno deslize poderia tê-lo arrastado a uma confissão completa se não fosse estar o seu espírito atento aos múltiplos sentidos das palavras que cautelosamente ia pronunciando, sobretudo aquelas que parecem ter um sentido só, com elas é preciso mais cuidado. Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é directo, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívovo, por assim dizer, ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direcções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-nos uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições."
Saramago, José. Todos os Nomes.
quarta-feira, 27 de abril de 2011
O rouxinol e a rosa - Oscar Wilde
O Rouxinol e a Rosa
Oscar Wilde
- Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas vermelhas – exclamou o Estudante – mas estamos no inverno e não há uma única rosa no jardim...
Por entre as folhas, do seu ninho, no carvalho, o Rouxinol o ouviu e, vendo-o ficou admirado...
- Não há nenhuma rosa vermelha no jardim! – disse o Estudante, com os olhos cheios de lágrimas. – Ah! Como a nossa felicidade depende de pequeninas coisas! Já li tudo quanto os sábios escreveram. A filosofia não tem segredos para mim e, contudo, a falta de uma rosa vermelha é a desgraça da minha vida.
- Eis, afinal, um verdadeiro apaixonado! – disse o Rouxinol. Tenho cantado o Amor noite após noite, sem conhecê-lo no entanto; noite após noite falei dele às estrelas, e agora o vejo... O cabelo é negro como a flor do jacinto e os lábios vermelhos como a rosa que deseja; mas o amor pôs-lhe na face a palidez do marfim e o sofrimento marcou-lhe a fronte.
- Amanhã à noite o Príncipe dá um baile, murmurou o Estudante, e a minha amada se encontrará entre os convidados. Se levar uma rosa vermelha, dançará comigo até a madrugada. Somente se lhe levar uma rosa vermelha... Ah... Como queria tê-la em meus braços, sentir-lhe a cabeça no meu ombro e a sua mão presa a minha. Não há rosa vermelha em meu jardim... e ficarei só; ela apenas passará por mim... Passará por mim... e meu coração se despedaçará.
- Eis um verdadeiro apaixonado... – pensou o Rouxinol. – Do que eu canto, ele sofre. O que é dor para ele é alegria para mim. Grande maravilha, na verdade, é o Amar! Mais precioso que esmeraldas e mais caro que opalas finas. Pérolas e granada não podem comprá-lo, nem se oferece nos mercados. Mercadores não o vendem, nem o conferem em balanças a peso de ouro.
- Os músicos da galeria – prosseguiu o Estudante – tocarão nos seus instrumentos de corda e, ao som de harpas e violinos, minha amada dançará. Dançará tão leve, tão ágil, que seus pés mal tocarão o assoalho e os cortesãos, com suas roupas de cores vivas, reunir-se-ão em torno dela. Mas comigo não bailará, porque não tenho uma rosa vermelha para dar-lhe... – e atirando-se à relva, ocultou nas mãos o rosto e chorou.
- Por que está chorando? – perguntou um pequeno lagarto ao passar por ele, correndo, de rabinho levantado.
- É mesmo! Por que será? – Indagou uma borboleta que perseguia um raio de sol.
- Por quê? – sussurrou uma linda margarida à sua vizinha.
_-Chora por causa de uma rosa vermelha - informou o Rouxinol.
- Por causa de uma rosa vermelha? – exclamaram – Que coisa ridícula! E o lagarto, que era um tanto irônico, riu à vontade.
Mas o Rouxinol compreendeu a angústia do Estudante e, silencioso, no carvalho, pôs-se a meditar sobre o mistério do Amor.
Subitamente, abriu as asas pardas e voou.
Cortou, como uma sombra, a alameda, e como uma sombra, atravessou o jardim.
Ao centro do relvado, erguia-se uma roseira. Ele a viu. Voou para ela e posou num galho.
- Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu cantarei para ti a minha mais bela canção!
- Minhas rosas são brancas; tão brancas quanto a espuma do mar, mais brancas que a neve das montanhas. Procura minha irmã, a que enlaça o velho relógio-de-sol. Talvez te ceda o que desejas.
Então o Rouxinol voou para a roseira, que enlaçava o velho relógio-de-sol.
- Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei minha canção mais linda.
A roseira sacudiu-se levemente.
- Minhas rosas são amarelas como as cabelos dourados das donzelas, ainda mais amarelas que o trigo que cobre os campos antes da chegada de quem o vai ceifar. Procura a minha irmã, a que vive sob a janela do Estudante. Talvez ela possa te possa ajudar.
O Rouxinol então, dirigiu o vôo para a roseira que crescia sob a janela do Estudante.
- Dá-me uma rosa vermelha - pediu - e eu te cantarei a mais linda de minhas canções.
A roseira sacudiu-se levemente.
- Minhas rosas são vermelhas, tão vermelhas quanto os pés das pombas, mais vermelhas que os grandes leques de coral que oscilam nos abismos profundos do oceano. Contudo, o inverno regelou-me até as veias, a geada queimou-me os botões e a tempestade quebrou-me os galhos. Não darei rosas este ano.
- Eu só quero uma rosa vermelha, repetiu o Rouxinol, - uma só rosa vermelha. Não haverá meio de obtê-la?
- Há, respondeu a Roseira, mas é meio tão terrível que não ouso revelar-te.
- Dize. Não tenho medo.
- Se queres uma rosa vermelha, explicou a roseira, hás de fazê-la de música, ao luar, tingi-la com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim com o peito junto a um espinho. Cantarás toda a noite para mim e o espinho deve ferir teu coração e teu sangue de vida deve infiltrar-se em minhas veias e tornar-se meu.
- A morte é um preço exagerado para uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol – e a Vida é preciosa... É tão bom voar, através da mata verde e contemplar o sol em seu esplendor dourado e a lua em seu carro de pérola...O aroma do espinheiro é suave, e suaves são as campânulas ocultas no vale, e as urzes tremulantes na colina. Mas o Amor é melhor que a Vida. E que vale o coração de um pássaro comparado ao coração de um homem?
Abriu as asas pardas para o vôo e ergueu-se no ar. Passou pelo jardim como uma sombra e, como uma sombra, atravessou a alameda.
O Estudante estava deitado na relva, no mesmo ponto em que o deixara, com os lindos olhos inundados de lágrimas.
- Rejubila-te – gritou-lhe o Rouxinol - Rejubila-te; terás a tua rosa vermelha. Vou fazê-la de música, ao luar. O sangue de meu coração a tingirá. Em conseqüência só te peço que sejas sempre verdadeiro amante, porque o Amor é mais sábio do que a Filosofia; mais poderoso que o poder.. Tem as asas da cor da chama e da cor da chama tem o corpo. Há doçura de mel em seus braços e seu hálito lembra o incenso.
O Estudante ergueu a cabeça e escutou. Nada pode entender, porém, do que dizia o Rouxinol, pois sabia apenas o que está escrito nos livros.
Mas o Carvalho entendeu e ficou melancólico, porque amava muito o pássaro que construíra ninho em seus ramos.
- Canta-me um derradeiro canto - segredou-lhe - sentir-me-ei tão só depois da tua partida.
Então o Rouxinol cantou para o Carvalho, e sua voz fazia lembrar a água a borbulhar de uma jarra de prata.
Quando o canto finalizou, o Estudante levantou-se, tirando do bolso um caderninho de notas e um lápis.
- Tem classe, não se pode negar – disse consigo – atravessando a alameda. Mas terá sentimento? Não creio. É igual a maioria dos artistas. Só estilo, sinceridade nenhuma. Incapaz de sacrificar-se por outrem. Só pensa e cantar e bem sabemos quanto a Arte é egoísta. No entanto, é forçoso confessar, possui maravilhosas notas na voz. Que pena não terem significação alguma, nem realizarem nada realmente bom!
Foi para o quarto, deitou-se e, pensando na amada, adormeceu.
Quando a lua refulgia no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e apoiou o peito contra o espinho. Cantou a noite inteira e o espinho mais e mais foi se enterrando em seu peito, e o sangue de sua vida lentamente se escoou...
Primeiro descreveu o nascimento do amor no coração de um menino e uma menina; e, no mais alto galho da Roseira, uma flor desabrochou, extraordinária, pétala por pétala, acompanhando um canto e outro canto. Era pálida, a princípio, qual a névoa que esconde o rio, pálida qual os pés da manhã e as asas da alvorada. Como sombra de rosa num espelho de prata, como sombra de rosa em água de lagoa era a rosa que apareceu no mais alto galho da Roseira.
Mas a Roseira pediu ao Rouxinol que se unisse mais ao espinho. – Mais ainda, Rouxinol, - exigiu a Roseira, - senão o dia raia antes que eu acabe a rosa.
O Rouxinol então apertou ainda mais o espinho junto ao peito, e cada vez mais profundo lhe saía o canto porque ele cantava o nascer da paixão na alma do homem e da mulher.
E tênue nuance rosa nacarou as pétalas, igual ao rubor que invade a face do noivo quando beija a noiva nos lábios.
Mas o espinho não lhe alcançava ainda o coração e o coração da flor continuava branco – pois somente o coração de um Rouxinol pode avermelhar o coração de rosa.
- Mais ainda, Rouxinol, - clamou a Roseira - raiar o dia antes que eu finalize a rosa.
E o Rouxinol, desesperado, calcou-se mais forte no espinho, e o espinho lhe feriu o coração, e uma punhalada de dor o traspassou.
Amarga, amarga lhe foi a angústia e cada vez mais fremente foi o canto, porque ele cantava o amor que a morte aperfeiçoa, o amor que não morre nem no túmulo.
E a rosa maravilhosa tornou-se purpurina como a rosa do céu oriental. Suas pétalas ficaram rubras e, vermelho como um rubi, seu coração.
Mas a voz do Rouxinol se foi enfraquecendo, as pequeninas asas começaram a estremecer e uma névoa cobriu-lhe o olhar, o canto tornou-se débil e ele sentiu qualquer coisa apertar-lhe a garganta.
Então, arrancou do peito o derradeiro grito musical.
Ouviu-o a lua branca, esqueceu-se da Aurora e permaneceu no céu.
A rosa vermelha o ouviu, e trêmula de emoção, abriu-se à aragem fria da manhã. Transportou-o o Eco, à sua caverna purpurina, nos montes, despertando os pastores de seus sonhos. E ele levou-os através dos caniços dos rios e eles transmitiram sua mensagem ao mar.
- Olha! Olha! Exclamou a Roseira. - A rosa está pronta, agora.
Ao meio dia o Estudante abriu a janela e olhou.
- Que sorte! - disse - Uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda a minha vida. É tão linda que tem certamente um nome complicado em latim. E curvou-se para colhê-la.
Depois, pondo o chapéu, correu à casa do professor.
- Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa vermelha, - lembrou o Estudante. – Aqui tens a rosa mais linda e vermelha de todo o mundo. Hás de usá-la, hoje a noite, sobre ao coração, e quando dançarmos juntos ela te dirá o quanto te amo.
A moça franziu a testa.
- Esta rosa não combina com o meu vestido, disse. Ademais, o Capitão da Guarda mandou-me jóias verdadeiras, e jóias, todos sabem, custam muito mais do que flores...
- És muito ingrata! – exclamou o Estudante, zangado. E atirou a rosa a sarjeta, onde a roda de um carro a esmagou.
- Sou ingrata? E o senhor não passa de um grosseirão. E, afinal de contas, quem és? Um simples estudante... não acredito que tenhas fivelas de prata, nos sapatos, como as tem o Capitão da Guarda... – e a moça levantou-se e entrou em casa.
- Que coisa imbecil, o Amor! – Resmungou o estudante, afastando-se. – Nem vale a utilidade da Lógica, porque não prova nada, está sempre prometendo o que não cumpre e fazendo acreditar em mentiras. Nada tem de prático e como neste século o que vale é a prática, volto à Filosofia e vou estudar metafísica.
Retornou ao quarto, tirou da estante um livro empoeirado e pôs-se a ler...
domingo, 24 de abril de 2011
Uma crônica de Saramago que me lembra Realengo, com e sem José!
"E agora, José?"
José Saramago
Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas – ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drumonnd de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso do tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: “E agora José?” Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atônitas. “E agora José?” Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo de interminável ladainha que é piedade por nós próprios.
Em todo caso, há situações de tal modo absurdas(ou que pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente afirmar. Nesse momento veloz tocara-se o fundo do poço.
Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drumonnd de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem. “E agora José?”
Precisamente um desses casos me mostra que já falei demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que trem como uma dor contínua. Sei que se chama José Junior, mas mais riquezas de apelido e genealogias, e vive em São Jorge da Beira. È novo, embriaga-se, e tratam-no como se fosse uma espécie de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurraram-no com aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e o José Junior, perdido de bêbado, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente - “E agora José?”
Afasto para o lado meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, avilta-los,fazer deles objecto de troça, de irrisão, de chacota-matando sem matar,sob a asa da lei ou perante sua indiferença.Tudo isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre.Tivesse ele bens avultados na terra ,conta forte no banco, automóvel a porta-e todos os vícios lhe seriam perdoados.Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para São Jorge da Beira.Nem todas as terras de Portugal se podem gabar de dispor de um alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas.
Escrevo estas palavras a muitos quilômetros de distância, não sei quem é José Júnior, e teria dificuldade em encontrar no mapa São Jorge da Beira.Mas estes nomes apenas designam casos particulares de um fenômeno geral:o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes ali como aqui mesmo, em toda parte, uma espécie de loucura epidêmica que prefere as vítimas fáceis.Escrevo estas palavras num fim de tarde cor de madrugada com espumas no céu, tendo diante dos olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos que vão de margem a margem levando pessoas e recados.E tudo isto parece pacífico e harmonioso como os dois pombos que pousam na varanda e sussurram confidencialmente.Ah, esta vida preciosa que vai fugindo,tarde mansa que não será igual amanhã, que não serás, sobretudo o que agora és.
Entretanto,José Júnior está no hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da Beira.Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da garrafa,como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura.A vida vai voltar ao princípio.Será possível que a vida volte ao princípio?Será possível que os homens matem José Júnior?Será possível?
Cheguei ao fim da crônica, fiz o meu dever.” E agora, José?”
Crônica retirada do Livro do autor A Bagagem do Viajante.
José Saramago
Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas – ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drumonnd de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso do tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: “E agora José?” Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atônitas. “E agora José?” Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo de interminável ladainha que é piedade por nós próprios.
Em todo caso, há situações de tal modo absurdas(ou que pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente afirmar. Nesse momento veloz tocara-se o fundo do poço.
Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drumonnd de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem. “E agora José?”
Precisamente um desses casos me mostra que já falei demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que trem como uma dor contínua. Sei que se chama José Junior, mas mais riquezas de apelido e genealogias, e vive em São Jorge da Beira. È novo, embriaga-se, e tratam-no como se fosse uma espécie de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurraram-no com aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e o José Junior, perdido de bêbado, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente - “E agora José?”
Afasto para o lado meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, avilta-los,fazer deles objecto de troça, de irrisão, de chacota-matando sem matar,sob a asa da lei ou perante sua indiferença.Tudo isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre.Tivesse ele bens avultados na terra ,conta forte no banco, automóvel a porta-e todos os vícios lhe seriam perdoados.Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para São Jorge da Beira.Nem todas as terras de Portugal se podem gabar de dispor de um alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas.
Escrevo estas palavras a muitos quilômetros de distância, não sei quem é José Júnior, e teria dificuldade em encontrar no mapa São Jorge da Beira.Mas estes nomes apenas designam casos particulares de um fenômeno geral:o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes ali como aqui mesmo, em toda parte, uma espécie de loucura epidêmica que prefere as vítimas fáceis.Escrevo estas palavras num fim de tarde cor de madrugada com espumas no céu, tendo diante dos olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos que vão de margem a margem levando pessoas e recados.E tudo isto parece pacífico e harmonioso como os dois pombos que pousam na varanda e sussurram confidencialmente.Ah, esta vida preciosa que vai fugindo,tarde mansa que não será igual amanhã, que não serás, sobretudo o que agora és.
Entretanto,José Júnior está no hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da Beira.Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da garrafa,como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura.A vida vai voltar ao princípio.Será possível que a vida volte ao princípio?Será possível que os homens matem José Júnior?Será possível?
Cheguei ao fim da crônica, fiz o meu dever.” E agora, José?”
Crônica retirada do Livro do autor A Bagagem do Viajante.
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